STJ poderá interferir em plano de arrecadação do governo

Um julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) previsto para este mês pode interferir nos planos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para aumentar a arrecadação. Trata sobre a tributação de empresas que recebem incentivos fiscais de ICMS.

A Corte vai decidir em caráter repetitivo, ou seja, com efeito vinculante para todo o Judiciário, se a União pode cobrar Imposto de Renda e CSLL sobre os ganhos obtidos com os benefícios concedidos pelos Estados.

Trata-se, aqui, dos valores que as empresas deixam de repassar aos cofres estaduais. Uma companhia que devia R$ 100 mil de ICMS, mas por ter direito à redução de base, por exemplo, pagou somente R$ 60 mil. A diferença – de R$ 40 mil – pode ser considerada lucro e tributada?

O ministro Fernando Haddad tem criticado a impossibilidade da cobrança nos casos em que o incentivo é concedido para custeio, ou seja, sem que a empresa tenha assumido uma contrapartida (ampliação ou construção de uma fábrica, por exemplo).

Ele afirmou, na semana passada, que o governo pretende editar uma medida provisória (MP) sobre essa questão. Segundo Haddad, existem empresas com “superlucros” se beneficiando e pagando menos impostos do que deveriam.

Para o ministro, essa situação provoca “distorções” na economia e pressiona as finanças públicas. “Está caro [o crédito] porque essas empresas [que não pagam impostos] desarrumaram o orçamento federal”, disse na quinta-feira, fazendo referência à Selic, hoje em 13,75%.

O julgamento está marcado para o dia 26 e ocorrerá na 1ª Seção do STJ – que reúne as duas turmas de direito público. O relator é o ministro Benedito Gonçalves.

Advogados se dizem surpresos com a celeridade com que o caso andou. Os ministros afetaram, em março, o tema da tributação dos benefícios fiscais para julgamento em repetitivo. “Nunca vimos julgar de um mês para o outro. Nem foram admitidos ainda os amici curiae [partes interessadas]”, afirma um profissional.

Existe receio, entre os tributaristas, de que os ministros estejam cedendo à pressão da União e decidam o tema com base exclusivamente no impacto aos cofres públicos.

O STJ tem entendimento consolidado em relação aos créditos presumidos (uma modalidade de incentivo fiscal de ICMS). A 1ª Seção decidiu contra a tributação em 2017.

Os ministros afirmaram, naquela ocasião, que a interferência da União esvaziaria um incentivo concedido por Estados e essa situação violaria o pacto federativo.

A discussão, agora, é se esse mesmo entendimento – contra a tributação – se aplica aos demais tipos de incentivo obtidos pelas empresas junto aos Estados: redução de base de cálculo, redução de alíquota, isenção, imunidade e diferimento, dentre outros.

Hoje existem decisões contra e a favor nos tribunais regionais e nas turmas de direito público do STJ. Na 1ª Turma há decisão contra a tributação. Na 2ª Turma, a favor.

Para advogados de empresas, no entanto, inexiste qualquer sentido para essa diferenciação. “Se o Estado está concedendo um benefício, a União não deve tributar, independentemente da forma como se contabiliza esse benefício”, diz Ricardo Varrichio, do escritório RVC.

“Por uma questão de coerência jurisprudencial”, afirma Rafael Nichele, do Rafael Nichele Advogados Associados. “Todos têm renúncia de receita. Basta ver as leis orçamentárias dos Estados. A única distinção entre os diferentes tipos de benefício é a forma como são concedidos. O efeito prático para a empresa que recebe e para o Estado que concede é o mesmo.”

Se o STJ decidir que nenhum benefício pode ser tributado pela União em razão do pacto federativo – assim como ocorreu com o crédito presumido -, o governo vai ter dificuldade de emplacar a cobrança por meio de uma nova lei.

Se insistir e publicar uma MP nesse sentido, afirmam especialistas, haverá uma leva de ações judiciais e, por causa do julgamento em repetitivo, o Judiciário deve dar ganho de causa às empresas.

Por outro lado, uma decisão contrária aos contribuintes pode dar força e celeridade à publicação da medida provisória que tem sido aventada pelo ministro Fernando Haddad. E, nesse caso, as empresas não teriam margem para contestar a tributação judicialmente.

O governo pretende, por meio dessa possível MP, desfazer uma mudança legislativa que deu mais munição para os contribuintes brigarem contra a tributação.

Envolve a Lei nº 12.973/2014, que, originalmente, separava subvenção para investimento de subvenção para custeio. Dizia, no artigo 30, que não poderiam ser tributados pela União os benefícios caracterizados como subvenção para investimento – com contrapartida das empresas.

Em 2017, no entanto, o Congresso aprovou a Lei Complementar nº 160, que alterou o artigo 30. Incluiu o parágrafo 4: “Incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal são considerados subvenções para investimento”.

Os contribuintes entenderam que, com a mudança, deixou de existir diferença entre os benefícios de ICMS – investimento ou custeio – e, por esse motivo, nada mais poderia ser tributado pela União.

Já a Receita Federal insiste que só não pode ser tributado o incentivo concedido como estímulo à ampliação do empreendimento econômico. Essa posição foi formalizada na Solução de Consulta nº 145/2020.

Trata-se de uma segunda discussão dentro do mesmo tema e, de acordo com advogados, é possível que também seja levantada no julgamento do STJ.

Os ministros poderão, por exemplo, entender que a tributação dos incentivos fiscais não viola o pacto federativo, mas a lei complementar vetou a cobrança e, por esse motivo, a União ficaria impedida de exigir Imposto de Renda e CSLL.

Poderão, por outro lado, dizer que a tributação não viola o pacto federativo e que a União tem razão ao interpretar que a lei complementar só impede a tributação de benefícios concedidos com contrapartida. Se isso acontecer, o governo nem vai precisar de uma MP para desfazer a mudança legislativa.

“A discussão será travada em torno de todos os demais benefícios que não os créditos presumidos e, nessa discussão, todos os argumentos serão utilizados”, diz o advogado Alberto Medeiros, do escritório TozziniFreire. “O tema, na sistemática repetitiva, não tem limitação de escopo”, acrescenta.

Os processos eleitos para o julgamento em repetitivo tratam das duas questões: violação ao pacto federativo e Lei Complementar nº 160 (REsp 1945110 e REsp 1987158).

Há otimismo de advogados de contribuintes sobre o posicionamento que será adotado pelos ministros em relação à lei complementar. É que mesmo a 2ª Turma – que tem entendimento mais favorável à União quando se discute pacto federativo – já se pronunciou sobre a lei e deu razão às empresas (REsp 1968755).

Para os contribuintes, no entanto, o argumento de violação ao pacto federativo tem muito mais peso. Seja como proteção contra possível medida provisória a ser editada pelo governo como por questões práticas, do dia a dia das empresas.

A diferença de fundamentação tem um efeito econômico. A lei complementar impede a tributação, mas estabelece que os valores que deixaram de ser repassados aos cofres estaduais sejam “registrados em reserva de lucros”. Significa que só poderão ser utilizados para investimentos na própria empresa.

Quando se entende por violação ao pacto federativo não há qualquer limitação. Os valores podem ser utilizados da forma como a empresa bem entender, inclusive na distribuição de dividendos.

O julgamento é importante e fica ainda mais dramático para as duas partes – contribuintes e governo – porque há chances de a decisão do STJ se tornar definitiva. O Supremo Tribunal Federal (STF), a quem caberia algum tipo de recurso, se manifestou sobre o tema da tributação de incentivos fiscais em 2017. Declinou do julgamento por entender tratar-se de discussão infraconstitucional.

(Valor Econômico)

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