A privatização do Carf

Em plena crise do coronavírus, no dia 24 de março, o Senado aprovou alteração no funcionamento do Carf, com objetivo de cancelar as autuações da Receita Federal sobre os maiores contribuintes do país, usuários contumazes de planejamentos tributários abusivos, cujos recursos julgados pelo Carf são, por vezes, decididos por voto de minerva proferido pelo presidente da turma julgadora.

O conselho é a segunda instância de julgamento de recursos na esfera administrativa federal sobre assuntos tributários, composto por turmas ordinárias e pela Câmara Superior de Recursos Fiscais, uma espécie de 3ª instância, para dirimir divergências entre as turmas ordinárias. Em fevereiro deste ano, o estoque do Carf era de 116 mil processos, que somavam um total de R$ 628 bilhões.

A Receita Federal tem fiscalizado mais fortemente o “andar de cima” da nossa sociedade, tem batido recordes de autuações

Cada uma das turmas de julgamento é composta por oito conselheiros (julgadores), sendo quatro representantes da Fazenda Nacional e quatro indicados pelas confederações nacionais, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), do Comércio, das Instituições Financeiras (CNF), da Agricultura (CNA), dos Serviços (CNS), entidades

representativas do patronato e do mercado. Esses são os conselheiros dos contribuintes. Na prática, as grandes empresas têm o poder de indicar, através das confederações, os juízes de suas próprias causas.

As turmas julgadoras são presididas pelos representantes da Fazenda, que detinham, até então, o chamado de voto de qualidade (de desempate). Com a mudança, em caso de empate, ganha o contribuinte, que fica totalmente livre da autuação do Fisco.

O modelo adotado pelo Carf – paritário, com julgadores indicados pelas confederações empresariais – existe há mais de 80 anos, herança do modelo varguista. A adoção de juízes não togados, os chamados juízes classistas, é um modelo abandonado em todo mundo, tanto no âmbito da Justiça do Trabalho quanto no campo do contencioso tributário. Aqui no Brasil, o que já era anacrônico ganhou ares de surrealismo.

As maiores empresas, que sempre influenciaram as confederações na indicação dos conselheiros do Carf, agora terão o poder total sobre o destino de suas próprias autuações. Baseado em um falso “in dubio” pro contribuinte, previsto no artigo 112 do Código Tributário Nacional, entregou-se nas mãos dos próprios autuados pela Receita Federal o deslinde dos seus recursos no Carf, lembrando que parte dos autos de infração (cerca de 27%) possui representações fiscais para fins penais (RFFP) por indícios de cometimento de crimes de sonegação, lavagem de dinheiro, corrupção, evasão de divisas, dentre outros crimes financeiros correlatos. Uma vez decidido o empate, pelo voto em bloco dos conselheiros dos contribuintes, não apenas a autuação fiscal será afastada, mas a RFFP jamais chegará ao conhecimento do Ministério Público Federal.

Durante as discussões no Senado, a senadora Katia Abreu (PDT/TO) defendeu o artigo e apresentou como argumento que apenas 7% dos recursos são definidos por voto de qualidade. De fato, essa é a média de 2017 a 2019 em termos de quantidade de processos: 5% julgados a favor da Fazenda Nacional e 2% do contribuinte, demonstrando que não há automaticamente voto de minerva a favor da Fazenda. Entretanto, em termos de valor, essas autuações correspondem aos valores mais expressivos e alcançam justamente os casos envolvendo os planejamentos abusivos mais sofisticados, as sonegações mais bem estruturadas. Somente os recursos decididos pela Câmara Superior do Carf por voto de qualidade, em 2019, somaram R$ 27 bilhões. Ou seja: se estivesse vigente o que foi aprovado pelo Senado, esse seria, por baixo, o tamanho da perda para os cofres públicos.

Nos últimos anos, a Receita Federal tem fiscalizado mais fortemente o “andar de cima” da nossa sociedade, tem batido recordes de autuações, criou unidades e equipes voltadas ao monitoramento e auditoria fiscal dos maiores contribuintes, tanto pessoas físicas quanto jurídicas, revelando falcatruas bilionárias perpetradas por pessoas e empresas poderosas, política e economicamente, além de todo o trabalho voltado às grandes operações, como a Lava Jato, Calicute, Zelotes, entre muitas outras com repercussão tributária e penal. A Zelotes revelou justamente um esquema de venda de decisões do Carf, envolvendo conselheiros dos contribuintes, e um representante da Fazenda, que era alocado em uma ou outra turma para garantir a vitória daqueles contribuintes no julgamento dos recursos.

A partir de agora, é esperado que haja uma mudança no comportamento dos julgadores dos contribuintes, altamente empoderados pelo fim do voto de qualidade. É plenamente possível que o valor de R$ 27 bilhões (em 2019) dobre ou triplique, algo impensável em tempos de gravíssima crise fiscal e de saúde pela qual passa o país.

Na prática, o que foi aprovado pelo Senado fará com que nunca mais esse estrato da sociedade seja incomodado pelo Fisco. Nesse fatídico 24 de março, o Senado deu um passo importante no aprofundamento das desigualdades sociais no Brasil. Se você é um dos muitos cidadãos comuns que, diferentemente dos milionários, não têm como deixar de pagar seus impostos, não culpe a Receita Federal por essa situação. E não se cale diante dela.

Kleber Cabral é auditor fiscal da Receita Federal e presidente do Sindifisco Nacional.

(Fonte: Valor Econômico)

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