A idiossincrasia do “Sistema S” e a pandemia

Assim como todo mau político, o “Sistema S” só costuma se lembrar de seu “eleitor” em época de eleição ou quando a coisa (ou o cinto) aperta. É o que está acontecendo exatamente agora.

O custeio dessas entidades (Sesc, Senac, Sesi, Senai, Sest, Senat, Senar, Sebrae e Sescoop) é feito por contribuições sociais patronais (empresários) do comércio, da indústria, da logística, ruralistas, empreendedorismo e cooperativas. Em 2018, por exemplo, o sistema arrecadou nada menos do que 17,8 bilhões de reais. Nada mal!

A Medida Provisória nº 932/2020 que “altera as alíquotas de contribuição aos serviços sociais autônomos que especifica e dá outras providências”, impõe redução, por três meses, de 50% nos recursos a ele destinados. Então  esse Sistema pede apoio do público junto a parlamentares federais para rejeição daquela medida, porque a redução daqueles recursos (que são públicos!) “comprometerá significativamente nossas capacidades de gestão e de enfrentamento das dificuldades que certamente se intensificarão.”

Em que mundo vive o Sistema S ? O mundo caindo e apenas ele pretende ficar de fora do esforço nacional que vai precisar ser feito para equacionar as despesas públicas?

O Sistema S vive uma permanente crise de identidade: é ou não é órgão público? Seus recursos têm ou não têm natureza tributária? A resposta, para os dirigentes desse sistema, é “depende”… Mas depende do quê? Depende do que convém no momento. Quando convém ser privado, é privado. Mas quando não convém, é público.

Já se estabeleceu na doutrina e na jurisprudência que o Sistema S é composto por pessoas jurídicas de direito privado, sem fins econômicos, criadas (por lei) para desenvolver atividades assistenciais ou de ensino a determinadas categorias profissionais. Essas entidades estão distribuídas por todo o território nacional, perfazendo atualmente um universo de aproximadamente 250 unidades.

Esse Sistema se subordina a regime jurídico híbrido, envolvendo normas de Direito Privado e também de Direito Público, tal como se dá com as Sociedades de Economia Mista, que ninguém duvida que façam parte da Administração Pública indireta. Órgãos de natureza pública, portanto. Por qual motivo as entidades do Sistema S estariam fora desta classificação?

Pegue todos os documentos ou cartilhas em que o Sistema S explica para as pessoas se ele é ou não um órgão público e constatará que todos afirmam que o Sistema S é exclusivamente privado. Recebe recursos públicos, maneja recursos públicos com critérios privados, mas é um órgão privado. Disto essas entidades extraem a primeira consequência jurídica: sendo privadas, elas supostamente não devem satisfação alguma aos Tribunais de Contas, por exemplo.

Quer um exemplo dentre centenas? Pois vá a algum sistema de buscas e digite “Projeto de lei ameaça acabar com o Sistema S” e encontrará, dentre muitas, a página eletrônica  https://www.sescpr.com.br/2018/07/projeto-de-lei-ameaca-acabar-com-o-sistema-s/ em que  está dito: “O caráter privado das receitas [está se referindo às receitas do Sistema S] torna inconstitucional a tentativa de desviá-las do serviço social e da formação profissional para custear a segurança pública, que é um dever do Estado e já possui dotação orçamentária proveniente de impostos.” Note que neste parágrafo o Sesc do Paraná afirma que não apenas é entidade privada como também suas receitas têm caráter privado, o que evidentemente não é verdade.

Além disto, em todas as ações judiciais por meio das quais o Ministério Público e os Tribunais de Contas tentam compelir o Sistema S à prestação de contas dos recursos recebidos, esse sistema as nega e se defende afirmando, em um malabarismo de argumentação jurídica labiríntica, estar infenso (e inalcançável) ao controle externo. Embora algumas dessas entidades existam há quase 8 décadas, foi somente em 2016 que o TCU realizou sua primeira auditoria (fiscalização) sobre recursos de 2015 e 2016. Por décadas o sistema não foi por qualquer forma controlado. O TCU já cansou de proclamar que esse Sistema está sim sujeito a fiscalização e controle (Ac. TCU 3.044/2009-Plenário, por exemplo) mas ele continua renitente.

As entidades desse Sistema agem como públicas apenas naquilo que convém, como (apenas para dar um exemplo) utilizar brasão da República em seus veículos ou documentos. Quando presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, a atual Senadora Kátia Abreu usava o Brasão em documentos quando cobrava de entidades filiadas as contribuições supostamente devidas à CNA. Se são entidades apenas privadas, então a utilização do Brasão e de outros símbolos que identificam órgãos públicos é inteiramente indevida. Ou seja: quando interessa (exercício explícito de poder) é entidade pública. Quando não interessa (dever de prestar contas do dinheiro público gasto) é privada. São, portanto, entidades que querem “comer a carne, sem roer o osso”. 

É bastante intrigante que entidades que recebem recursos públicos e os utilizem com critérios privados se recusem a prestar contas. Por que será? O que é que essas entidades querem manter longe do sol desinfectante em que as coisas colocadas a público se convertem? Qual o motivo da falta de transparência? Teria alguma ligação com a perpetuação de seus dirigentes na direção delas?

A notória falta de transparência não permite, por exemplo, aferir a conformidade dos contratos firmados pelos entes do Sistema S, nem a correção das informações que prestam quando solicitados, nem a gratuidade dos cursos oferecidos (apesar do frequente alarde de que esse sistema fornece cursos gratuitos, os jovens de baixa renda tentam, quase sempre em vão, conseguir gratuidade no SENAC para fazer algum curso), nem a equivalência das folhas de pagamentos das entidades com os valores usuais de mercado, nem a exatidão de seus balanços patrimoniais, receitas, transferências e disponibilidades financeiras. Nenhuma destas informações está franqueada, facilitada e realmente disponível.

Essas entidades sempre convenientemente se apresentaram como “entidades privadas” exatamente para estarem livres do cabresto e da vigilância dos órgãos de controle, para fazerem com o dinheiro público (de todos nós) o que bem entendam em favor próprio ou de grupos há décadas assentados em seus cargos de direção.

Embora tenham sempre se apresentado como entidades privadas, elas parecem estar escorregando nessa convicção. Em carta destinada a todos os sindicatos que compõem sua base, reclamando dos cortes impostos pela Medida Provisória, uma delas afirmou: “…tal dispositivo não foi aplicado à Diretoria de Portos e Costas – DPC, ao Fundo Aeroviário – FAER, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE…” . E completa: “estes e outros órgão públicos não foram afetados [pelo corte]; só o Sistema S foi…”. Por aí se vê que estão se reconhecendo como órgãos públicos.

Se aqueles órgãos são públicos e o Sistema S é privado, qual a base para a comparação? Só pode se comparar com órgão público quem for um deles. Como é que o Sistema S pretende se comparar com aqueles órgãos afirmando que eles não foram atingidos pelos cortes?  A resposta é simples: o Sistema S só se compara com aqueles órgãos públicos porque no fundo, no fundo, sabe que ele também é um órgão de natureza pública. Não é um privado puro sangue. A comparação mais não é, neste caso, que um “ato falho”.

Quando se apresenta como “mera entidade privada”, embora saiba que na verdade mais se aproxima de um órgão de natureza pública, cada uma das entidades que compõem o Sistema S o faz sob medida, de forma estudada, deliberada e (sempre convém) dissimulada. Pura idiossincrasia.

Vivem elas, de fato, diversos conflitos internos para se auto reconhecerem como entidade pública ou privada. Vivem aquilo que a psicologia (se existisse uma psicologia institucional) chamaria de “dicotomia da personalidade”. Ora prevalece, quando convém, a instituição pública e ora se apresenta, quando oportuno, a entidade privada. Agem estas duas personagens, que convivem em um mesmo ser, como “vizinhos morando no mesmo condomínio”, cada qual se comportando de forma diversa, contraditória ou até mesmo antagônica, em autêntico “transtorno dissociativo de identidade”, em que ora predomina uma e ora outra. 

Prestaria um enorme serviço público o Sistema S se reconhecesse de uma vez por todas, sem atender às conveniências ocasionais do oportunismo, tratar-se de um sistema público, composto por entidades de natureza pública, que manejam recursos públicos (embora parafiscais) e devem prestar contas demonstrando cabalmente a utilização correta desses recursos, apenas focada no interesse público.

Mas se pretende insistir em ser o que não é – uma entidade puramente privada – ainda assim há de aceitar a realidade constitucional que impõe a utilização correta daqueles recursos e a indissociável prestação de contas. Ou então que viva exclusivamente de recursos privados e não receba os de natureza tributária. Enquanto aquinhoado com recursos públicos, ninguém, nenhuma empresa e nenhuma instituição está acima da lei porque, perante esta, todos se igualam.

O Sistema S não tem legitimidade, nesta fase obscura da vida nacional, para pedir a ninguém que vá buscar socorro junto à classe política federal para salvá-lo do corte de recursos a que todos os órgãos públicos (e com ainda muito maior razão os que recebem recursos públicos, mas se auto proclamam entidades privadas) estão e ainda estarão sujeitos. O momento complexo com suas gravíssimas consequências econômicas e sociais, impõe a todos – e também às entidades do Sistema S, porque não? – sacrifícios inusitados e capacidade de resiliência. Que motivos temos, como sociedade, para manter o Sistema S encastelado e afastado do olho e dos desastrosos ventos deste furacão fiscal que se avizinha e que nos atingirá indistintamente?

Passou da hora de o Sistema S parar de olhar para si e para suas próprias conveniências, levantar a cabeça para olhar o horizonte das dificuldades nacionais e agir com a grandeza que o interesse público exige, oferecendo a quota de sacrifício que lhe compete e que temos todos, como sociedade, o direito de exigir.

(Professor-doutor Giovanni Galvão, consultor em Terceiro Setor

Campinas, 13 de abril de 2020)

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