Acordo Trump-Milei cria problemas a Mercosul e UE

O governo Trump fez nova investida para recuperar terreno perdido pelos EUA na América Latina, ao anunciar, na última quinta-feira, acordos comerciais com governos ideologicamente próximos, como os de Argentina, El Salvador, Guatemala e Equador. Com esses países alinhados à direita, Trump ofereceu alguma redução de tarifas nos principais produtos exportados por eles, enquanto assegurou menores barreiras tarifárias e não tarifárias para produtos e serviços americanos, em especial os digitais.

O caso da Argentina traz problemas sérios para o Brasil. Sendo uma união aduaneira, a Argentina teria de obter permissão especial para oferecer qualquer concessão relacionada a acesso tarifário e de mercados, ou fazer uma polêmica mudança em sua lista de exceções tarifárias. Isso é particularmente divisivo, porque o presidente Javier Milei se comprometeu a eliminar restrições a veículos americanos, por exemplo, enquanto mantém um acordo automobilístico de décadas com o Brasil, que permitiu integração produtiva no setor entre os dois países.

Os “acordos” comerciais que Trump anuncia estão longe de serem compromissos documentados e formalmente firmados, com aprovação dos respectivos Legislativos. São promessas verbais, com alguns rascunhos alinhavados em comunicados com poucos detalhes e nível muito precário de informação. Sua validade é tão durável quanto os humores de Trump — como demonstra o episódio em que ampliou tarifas em 10% sobre o Canadá, país com o qual os EUA têm um acordo de livre comércio formal, apenas porque a província de Ontário divulgou propaganda na qual o então presidente Ronald Reagan critica tarifas.

Além disso, a abertura de mercado argentino a bens americanos e alguma reciprocidade dos EUA a produtos argentinos reabrem antigas divisões no Mercosul. Carlos Menem, peronista que governou o país de 1989 a 1999 e idolatrado por Milei, pretendia firmar acordo à parte do Mercosul com os EUA, com quem manifestou o desejo de ter “relações carnais”. O Uruguai, quando governado por partidos liberais, demonstrou diversas vezes a intenção de fazer acordos em separado, com China e EUA. Foram manifestações de inconformismo com a paralisia do Mercosul, também compartilhadas pelo governo Bolsonaro, que acreditava que o bloco era um empecilho para o Brasil ampliar suas redes comerciais mundo afora.

A investida de Trump pode ter um poder destrutivo maior sobre o bloco. O entendimento com a Argentina envolve tarifas, propriedade industrial, trabalho e comércio digital. Milei prometeu eliminar barreiras de todo tipo à importação de veículos e de carne de frango — da qual o Brasil é um dos maiores produtores mundiais — além de carne bovina, produtos agrícolas não especificados, medicamentos, produtos químicos e máquinas.

A Argentina é grande produtora mundial de soja e o Brasil, o maior de carne bovina; ambos concorrem com os EUA no mercado global. Não são conhecidos os detalhes do acordo, mas tende a ser polêmico e impopular que Milei aceite estimular concorrência aberta no mercado doméstico de um dos produtos símbolos do país, a carne, enquanto coloca em xeque a integração do mercado de automóveis com o Brasil, possivelmente a mais bem-sucedida iniciativa realizada no Mercosul.

Há muito mais em jogo. O Mercosul poderá firmar, após mais de 20 anos de idas e voltas, um acordo comercial com a União Europeia. A Argentina foi um dos obstáculos ao entendimento, e a proteção da indústria automobilística foi um dos entraves nas longas negociações. Os presidentes peronistas Cristina Kirchner e Alberto Fernández eram contrários à globalização e a aberturas comerciais. Milei defende a liberdade de mercados, mas, ao que parece, está deixando de lado tratados de décadas assinados com os países vizinhos.

Carros e produtos agrícolas têm cláusulas especiais no acordo com a União Europeia — período de 15 a 30 anos para o fim das tarifas sobre os primeiros, e cotas e várias restrições de acesso mútuo para os últimos. O entendimento de Milei com Trump deixa de lado a negociação com a UE, que poderá ser sacramentada até o fim do ano. As conversas com o governo americano podem ser o motivo pelo qual a Argentina tem se esquivado de participar do encontro dos chefes de Estado do Mercosul, marcado pelo Brasil para o próximo mês.

Os acordos de Trump na América Latina podem ter vários objetivos. Um deles é isolar os governos de esquerda, acenando com concessões — poucas — a aliados e tratando duramente os demais. Nesse caso, as recém-iniciadas negociações com o Brasil não devem ir longe. Ou, mais provavelmente, Trump quer recuperar o terreno perdido para a China. Nesse sentido, faria concessões importantes ao Brasil, ainda que condicionais. Nesse cenário, a Argentina, que tem um acordo de swap originalmente do mesmo tamanho que o concedido pelos EUA (US$ 20 bilhões), teria de fazer uma opção difícil.

O movimento de Trump embaralha todas as cartas. Coloca em xeque a união do Mercosul, desafia o acordo do bloco com os europeus e tenta conter a crescente influência chinesa no continente. É desagregador, mas é um jogo que o presidente americano sabe fazer bem.

(Valor Econômico)

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