O tema do fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) gera intensos debates, por envolver interesses dos contribuintes e do fisco, quase sempre opostos.
Como funcionam o processo administrativo junto ao CARF e o voto de qualidade?
O CARF é um órgão paritário, composto por turmas de julgamento. São oito conselheiros julgadores, sendo que metade deles representa a Fazenda Nacional e a outra, o contribuinte.
Uma vez lavrado o auto de infração contra o contribuinte, este é notificado e tem o prazo de 30 dias corridos para apresentar sua defesa administrativa para a primeira instância. Caso ele não obtenha êxito na esfera administrativa, tem o direito de apresentar um recurso voluntário ao CARF.
Digamos que, ao julgar esse recurso voluntário, ocorra um empate. Neste caso, o presidente do colegiado é quem tem direito ao “voto de Minerva”, embora ele já tenha proferido seu voto anteriormente. Seu voto, portanto, terá efeito potencializado: valerá por dois. O problema principal é que, no caso do CARF, este indivíduo que vai votar e desempatar é sempre um representante do fisco. E aí a roda pega!
Como esta situação aparenta ser um tanto, digamos, escandalosa, a Lei Federal 13.988/20 alterou o regime do voto de qualidade no CARF. Acrescentou-se à Lei 10.522/2002 o artigo 19-E, afirmando que a manifestação de desempate a favor do fisco feita pelo presidente da turma julgadora não seria mais admitida “em julgamento do processo administrativo de determinação e exigência de crédito tributário”, de modo que a controvérsia, objeto de julgamento administrativo, deveria ser resolvida favoravelmente ao contribuinte.
Como esta nova situação traria severos prejuízos à União, o Ministério da Economia resolveu apegar-se à risca aos exatos termos da nova determinação legal, afirmando pela Portaria 260/2020, publicada em 1º de julho de 2020, que o voto de qualidade só deixaria de ser aplicado a processos decorrentes de autos de infração e não envolveria todos os demais casos que são julgados pelo CARF. Além disto, a nova regra só valeria para julgamentos feitos a partir de 14 de abril (sem efeito retroativo, portanto) e que o voto de qualidade continuaria existindo, valendo e sendo aplicado para julgamentos que envolvem:
- responsáveis solidários (como sócios de empresas, por exemplo);
- responsáveis tributários (não contribuintes);
- questões processuais e de embargos de declaração.
Ou seja: a Fazenda resolveu seguir o preceito “segura na mão da Lei… e vai!”
Convém esclarecer, portanto, que embora a tal portaria não tenha colocado fim ao voto de qualidade (pois ele ainda se mantém para algumas situações), ela efetivamente esvaziou bastante seu âmbito de aplicabilidade.
Existem três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) pendentes de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Devido ao órgão ser palco de muitas discussões, certamente, cria-se insegurança jurídica em torno do assunto, com grandes repercussões na vida prática de todos os contribuintes (tanto PF quanto PJ).
O que o STF diz?
No início do julgamento, manifestou-se o ministro Luis Roberto Barroso, afirmando que a norma seria constitucional, mas, para obter o reequilíbrio necessário entre as partes, haveria a possibilidade de ajuizamento de ação pela Fazenda Pública.
Nesse contexto, ele propôs a seguinte tese de julgamento:
“É constitucional a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), significando o empate decisão favorável ao contribuinte. Nessa hipótese, todavia, poderá a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário.”
Acontece que a função do processo administrativo tributário é realizar o controle de legalidade do ato administrativo que imputa tributos e sanções pecuniárias ao contribuinte. Sendo assim, os conselheiros devem seguir o regimento interno, pois o CARF integra a estrutura do Ministério da Economia (participando, portanto, da estrutura dos órgãos do Governo Federal).
Interpretações e consequências
A derrota – com o fim do voto de qualidade – possibilitou que diversos contribuintes ingressassem com ações judiciais para discutir não somente o mérito da exigência, mas também declarar a nulidade do julgamento, alegando que tal decisão violaria a isonomia e os princípios da tipicidade tributária e da reserva legal.
Alguns contribuintes obtiveram resultados positivos e, de alguma forma, restabeleceu-se a segurança jurídica, com a concessão de liminares em primeira instância. Estas anularam o voto de qualidade (proferido pelo representante da Fazenda) com o entendimento de ele ser inconstitucional.
Mas alguns auditores da Receita Federal continuam argumentando que:
- os empates só devem favorecer o contribuinte no sentido estrito da exigência de tributos;
- em caso de empate, beneficiam-se os contribuintes em casos de multa;
- como decorrência da amplitude do fim do voto de qualidade aplicado indistintamente a todos os tipos de situações submetidas ao CARF, haveria perda de arrecadação para os entes federativos (União, estados e municípios).
Propõem, então, aniquilar o voto de qualidade de forma geral, sob o argumento de que, havendo empate no CARF e a decisão beneficie o contribuinte, este passará a ter direito a uma compensação, por exemplo, e não à devolução do valor eventualmente já recolhido aos cofres públicos.
Uma análise mais incisiva
Em abril de 2021, a arrecadação federal no Brasil atingiu R$ 156,8 bilhões, valor recorde para o mês em plena pandemia da Covid-19. Com isto, saltou 45,2% em termos reais, na comparação com o mesmo período do ano anterior. Estes são dados divulgados pela própria Receita Federal.
A manutenção do voto de qualidade proferível por um representante da Fazenda no CARF não é mais do que um instrumento adicional para garantir à União camadas de recordes de arrecadação. Estas dão conta do pagamento do Auxílio Brasil, incrementam a infraestrutura nacional e fazem a manutenção dessa paquidérmica máquina estatal, inchada de funcionários e infartada de tanta corrupção.
A reforma administrativa vem tarde e será aplicada apenas aos novos funcionários contratados a partir da sua edição. Ou seja: o inchaço da máquina pública federal não será tratado logo e continuaremos precisando de mais e mais recordes de arrecadação para mantê-la funcionando e “saudável” (para eles).
O fato é que estou cansado dos demagogos existentes dentro do fisco, que não querem aceitar a derrota imposta pela democracia paritária (aprovação de normas pelo Legislativo, envolvendo o CARF) quando esta – por exemplo, como agora –, garante o direito dos contribuintes junto ao CARF. Na verdade, o que fazem é lançar uma cortina de fumaça para tentar dissimular a própria torpeza.
“Olho vivo, que cavalo não desce escada!” Esta frase, do já falecido jornalista e colunista social Ibrahim Sued, significa que deveríamos permanecer alertas, pois algo fora da ordem estava acontecendo ou iria acontecer.
Pois o cavalo ainda teima em descer as escadas, como nunca se viu antes, e isto parece não nos surpreender. Talvez acostumados que estamos a tantas leis que não “pegam”. Nossa vigilância precisa ser redobrada para evitarmos surpresas. Afinal, as notícias que chegam diariamente são capazes de espantar e provocar todo tipo de reação nos contribuintes de boa fé.
Luiz Ramos – Presidente do SINDICOMIS, ACTC e CIMEC