As súmulas do Carf não prestam obediência à Constituição Federal?

A finalidade do Carf é julgar recursos que versem sobre a aplicação da legislação tributária (artigo 1º do Anexo II do Regimento Interno do órgão), ou seja, solucionar um contencioso fiscal, observando as garantias constitucionais do contribuinte.

Para cumprir essa função existe, no nosso ordenamento jurídico, o processo administrativo tributário, previsto na Constituição Federal como garantia fundamental.

O Código Constitucional de Defesa do contribuinte, previsto no artigo 150 da Constituição Federal, que trata das limitações ao poder de tributar, assegura várias garantias e, como se sabe, as garantias constitucionais não admitem interpretação restritiva, mas ao contrário, devem ser interpretadas de tal maneira que se lhes dê a maior eficácia possível. O Carf, como órgão julgador, é responsável pela observância dessas garantias constitucionais. Sua finalidade é julgar recursos, compondo, administrativamente, uma lide tributária, com observância do devido processo legal administrativo previsto no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.

Ninguém está acima da Constituição. Não é por outro motivo que o artigo 23, I, da nossa Carta Magna dispõe que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição. Assim como é dever da União zelar pela guarda da Constituição, é também dever do Carf, como órgão da União, fazer o mesmo.

A primeira garantia inserida no rol das limitações do poder de tributar é a da legalidade, e a legalidade em sentido estrito, ou seja, aquela que decorre do princípio da reserva legal, pelo qual a obrigação de pagar tributo tem de estar integralmente prevista em lei. Assim como não se admite crime por analogia, também não se admite tributo por analogia.

O princípio da legalidade, ao qual está subordinada a Administração Pública (artigo 37 da Constituição Federal), diante da supremacia e da força normativa da Constituição, passou, com ela, a ser interpretado como princípio da juridicidade, ou bloco de legalidade, pelo qual o direito é visto como um todo, observando, de maneira essencial, os postulados constitucionais.

A lei, por si só, não é mais suficiente para atender ao princípio da legalidade. Pela constitucionalização do direito e, principalmente, pela rigidez constitucional que é uma das características da nossa lei maior, lei só é lei se for constitucional. Admitir-se a obrigatoriedade de observância, pelo conselho de contribuintes (Carf), de uma lei tributária inconstitucional é ferir de morte o direito fundamental do contribuinte de só ser obrigado a pagar tributo nos limites traçados na Constituição. Absolutamente írrita, portanto, a Súmula 2 do Carf, que diz: “O Carf não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”, ou seja, o Carf ao dirimir o conflito entre o Fisco e o contribuinte, na sua função de julgar, impõe a observância de leis tributárias inconstitucionais. É evidente que o Carf não pode fazer o controle de constitucionalidade de uma lei tributária pelo sistema concentrado. Isso é competência do Judiciário; porém nada impede, antes se impõe que faça o controle pelo método difuso.

Mas o absurdo maior é que o conselheiro é punido com a perda do mandato se quiser cumprir a Constituição Federal deixando de aplicar uma lei tributária inconstitucional. É o que diz o artigo 45, VI, do Regimento Interno do Carf.

“Artigo 45 — Perderá o mandato o conselheiro que:
VI – deixar de observar enunciado de súmula do Pleno da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais).”

Qual a independência de um conselheiro do Carf? Como poderá agir com imparcialidade? Onde fica o devido processo legal administrativo? Onde fica a ampla defesa garantida pelo artigo 5º, LV, da Constituição Federal? A súmula 2 do Carf é uma afronta ao ordenamento jurídico pátrio. Está mais do que na hora de ser revogada, de ser esquecida.

Outra súmula que precisa urgentemente ser cancelada é a de nº 11, que diz: “Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal” (Vinculante, conforme Portaria MF nº 277, de 7/6/2018, DOU de 8/6/2018).

Também ofende a Constituição Federal, porque está na contramão do princípio da razoável duração do processo, consagrado no artigo 5º, LXXVIII, que diz: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

E o direito a uma razoável duração do processo, no âmbito administrativo, não é novidade, porque na Constituição Federal de 1934 já constava no capítulo que tratava dos direitos e das garantias individuais, artigo 113 -35, que “a lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas”.

A demora no julgamento dos processos tributários administrativos gera insegurança jurídica para o contribuinte, que fica na expectativa da decisão, e enquanto isso a dívida vai sendo acrescida de juros e correção monetária, que retroagem à data do débito exigido, fazendo com que a demora beneficie o Fisco.

Há previsão no artigo 24 da Lei nº 11.457, de 16/3/2007, de que é obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte. Infelizmente as consequências do descumprimento desse prazo foram vetadas, mas o dispositivo já mostra a preocupação do legislador com a inércia ou incúria do Executivo em relação ao andamento dos processos administrativos tributários.

É verdade que esse prazo de 360 dias não é para a conclusão do processo administrativo tributário, mas, sim, para se proferir uma decisão. Mas não é possível aceitar-se a paralização indevida desses processos, sob pena de consagrar-se a imprescritibilidade do crédito. Se existe prazo para o lançamento e cobrança desses créditos, que é de cinco anos (artigos 173 e 174 do CTN), o mesmo deve aplicar-se para o julgamento das impugnações, quando o descaso do fisco com a solução do conflito for injustificável.

Na lição de Walmir Luiz Becker:

“Seria contrário ao princípio constitucional da moralidade administrativa, consagrado no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, admitir-se que a administração tributária, em face de um processo administrativo fiscal, pudesse ficar inerte pelo tempo que bem entendesse, sem maiores cuidados quanto à movimentação deste, no pressuposto de que não estaria sujeita à decadência ou prescrição, enquanto não proferida a decisão final do julgador administrativo” [1].

É natural que se leve em conta a complexidade da causa, a atividade do contribuinte e a conduta do Fisco; situações que poderiam justificar uma dilação maior desse prazo, mas não se pode esquecer o princípio da eficiência da Administração Pública prevista no artigo 37 da Constituição Federal.

Para justificar uma dilação do prazo de cinco anos para o julgamento da impugnação apresentada pelo contribuinte, é necessário que a Administração Pública demonstre sua eficiência, no caso concreto, ou seja, que promoveu, dentro do possível, a celeridade do processo.

Para Zelmo Denari há um duplo prazo decadencial, um para o lançamento e outro para o julgamento da impugnação do contribuinte, quando diz: não é equivocado visualizar no caso dois termos decadenciais bastante nítidos; o primeiro se refere ao início da constituição do crédito tributário, enquanto que o segundo a sua constituição definitiva [2].

A mesma razão de ser para o prazo decadencial inicial aplica-se para o da constituição definitiva do crédito tributário, ou seja, a segurança jurídica e a necessária estabilidade das relações jurídicas que não podem se eternizar.

Também é importante relembrar o instituto da perempção que é um prazo para a duração máxima do processo, no caso, processo administrativo.

Tanto a decadência para a constituição definitiva do crédito tributário, como a prescrição intercorrente e a perempção para o encerramento do processo administrativo fiscal levam ao mesmo resultado: a extinção desse crédito. Por uma questão formal, a decadência ou prescrição, em matéria tributária, dependem de lei complementar, nos termos do artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal, mas isso não impede que se reconheça, com base nos princípios da razoabilidade duração do processo e nos da moralidade e eficiência administrativa, o reconhecimento de que o Fisco tem o prazo de cinco anos para constituir definitivamente o crédito tributário com base no instituto da perempção, salvo situações excepcionais, devidamente justificáveis.

Dessa forma resta prejudicada a Súmula 11 do Carf por contrariar os citados princípios constitucionais e porque a extinção do processo, no mesmo prazo da prescrição intercorrente, ocorre por força da perempção.

 

[1] HAIDER, Raul. Processos administrativos tributários devem terminar em prazo razoável. Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2016. Consulta em 09/05/2021. https://www.conjur.com.br/2016-fev-22/justica-tributaria-processo-administrativo-tributario-terminar-prazo-razoavel

[2] DENARI, Zelmo. Decadência e prescrição tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1984. 

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Jorge de Oliveira Vargas é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, integrante da 3ª Câmara Cível com competência em matéria tributária, mestre, doutor e pós-doutor pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Tributário na Universidade Tuiuti do Paraná e de Constitucional na Escola da Magistratura do Paraná e no Centro Universitário Opet, membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, do Instituto de Direito Tributário do Paraná e membro fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2021, 9h11

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