O IMBRÓGLIO EM TORNO DA MP 870

Há pouco tempo, fatos envolvendo a Receita Federal têm chamado a atenção dos contribuintes em torno da MP 870. Foi noticiado pela imprensa que as investigações realizadas até o momento atingiram ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assim como desembargadores, procuradores e pessoas próximas a eles – principalmente aquelas que exercem a advocacia.

De maneira açodada, e sem o estabelecimento do devido processo legal, esses cidadãos foram acusados publicamente pela Receita Federal (RFB) de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de bens e tráfico de influência – crimes cuja investigação claramente escapa à competência da RFB.

Diante desses graves fatos, surgem as seguintes indagações: poderia a Receita Federal exercer uma atividade investigativa e secreta, desatrelada de sua atividade institucional? A atuação de “grupos especiais” de investigação, instituídos no âmbito da Receita Federal, poderia ir além da identificação de ilícitos tributários? Não estaria a Receita Federal, nas situações mencionadas, usurpando competência policial ou do próprio Ministério Público e, portanto, agindo com desvio de finalidade? Mais do que isso, ao investigar cidadãos de forma secreta e unilateralmente, não estaria a Receita agindo em contrariedade ao devido processo legal?

Inicialmente, parece não haver dúvida do desvio de finalidade praticado pela RFB. Ocorre que não há nada que delimite a competência do secretário da Receita Federal e, consequentemente, do próprio órgão, deixando claro que as atividades permitidas a ele se relacionam à coordenação, supervisão, execução e controle das atividades de administração tributária e aduaneira, interpretação e aplicação da legislação tributária, planejamento, supervisão e execução da atividade de fiscalização tributária, dentre outras questões relacionadas ao planejamento, fiscalização e execução das normas tributárias e aduaneiras.

Por certo não há, dentre as competências e atribuições contidas, qualquer previsão para que o órgão possa atuar em substituição às autoridades policiais e ao próprio Ministério Público, na investigação, acusação e persecução de crimes que em nada se relacionam a ilícitos tributários, como ocorreu nas acusações de práticas de corrupção, tráfico de influência, ocultação de bens e lavagem de dinheiro atribuídas a agentes públicos e advogados.

É nítido, portanto, que a atuação da Receita Federal em tais situações vem ocorrendo em evidente desvio de finalidade, ultrapassando a competência que lhe é atribuída legalmente.

Outro ponto de destaque reside no fato de que o reconhecimento, por parte do STF, quanto à competência do Ministério Público para promover inquéritos de natureza penal não significa carta branca para que procedimentos investigatórios sejam instaurados e conduzidos no âmbito do Ministério Público sem a observância aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito. O parquet pode, por certo, atuar em cooperação com a Receita Federal na apuração de crimes que tenham origem em ilícitos tributários.

No entender da Suprema Corte, a investigação a ser instaurada e conduzida pelo Ministério Público deve seguir os mesmos preceitos do inquérito policial e procedimentos administrativos sancionatórios; deve haver instauração formal do procedimento, que poderá da mesma forma ser sigiloso ou não; deve ser controlada pelo Poder Judiciário e deve haver pertinência entre o sujeito passivo com o fato investigado; deve haver a juntada cronológica de atos e fatos processuais, principalmente diligências, provas coligidas e oitivas; e, principalmente, deve haver o pleno conhecimento dos atos de investigação à parte e ao seu advogado, sendo que a atuação do parquet deve ser subsidiária e ocorrer quando não for possível ou recomendável a atuação da própria polícia. Não se nega, de forma alguma, a importância da Receita Federal para a administração tributária nacional em “Exercer a administração tributária e aduaneira com justiça fiscal e respeito ao cidadão, em benefício da sociedade”, e concordamos que assim o seja. Também não se nega a importância da atuação conjunta da Receita Federal com as autoridades policiais e com o Ministério Público – que, em cooperação, podem agir na identificação, repreensão e reparação de crimes cometidos contra a administração tributária.

Dentro dessa esteira, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) apresentou no dia 7 de maio o seu relatório sobre a Medida Provisória 870, que tem por objetivo reorganizar a estrutura administrativa do governo. No entanto, o texto, que deveria se limitar às mudanças administrativas em ministérios e órgãos da Presidência da República, recebeu uma preocupante emenda.

A emenda, que não guarda relação com o teor específico do projeto, reduz o poder de atuação da RFB e compromete as ações de combate à corrupção e de enfrentamento a crimes como caixa 2, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, entre outros.

Sob a justificativa de promover maior segurança jurídica e preservar as garantias constitucionais da intimidade e do sigilo de dados, a referida emenda, na prática, impede que operações de combate à corrupção possam ser executadas a partir de informações que venham a ser descobertas em ações fiscais empreendidas pela Receita Federal.

O relatório apresentado propõe alterações na Lei 10.593 e determina que, mesmo que a Receita Federal se depare com indícios de crimes diversos, durante a investigação de crimes contra a ordem tributária e/ou relacionados ao controle aduaneiro, esses indícios não podem ser compartilhados, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo.

É importante ressaltar que a Receita Federal possui normas internas e regras expressas em portarias que regulamentam as representações fiscais para fins penais e atos de improbidade, que são encaminhadas pela RFB ao Ministério Público Federal competente para promover ações penais.

Recentemente, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em memorial enviado aos ministros do STF, sustentou que o compartilhamento com o Ministério Público de informações bancárias e fiscais obtidas por autoridades fazendárias no curso de fiscalizações não neces-sita de prévia autorização judicial.

O entendimento foi defendido pela procuradora-geral da República, que argumentou que a troca de informações, com a devida transferência do sigilo, é constitucional e que não há necessidade de a Justiça autorizar o compartilhamento de informações bancárias da Receita Federal ao Ministério Público, porque a transferência de dados não implica quebra de sigilo bancário, já que o Ministério Público continuará a resguardar as informações compartilhadas pelo órgão fiscal. Entendimento que, inclusive, tem sido aplicado pelo STF, que reconhece a legalidade da utilização da prova obtida diretamente pelo Fisco para fins penais.

Importante que se diga que essa emenda segue no sentido de acabar de vez com o “excesso de exação” praticado pelos servidores públicos da RFB, com a justificativa dos famigerados atos contra os contribuintes de boa-fé, sob um argumento teratológico, sem precedentes e sem qualquer respaldo legal e constitucional.

É preciso que a comissão que analisa a MP 870 mantenha a proposta do novo texto dessa emenda, que vai atender os direitos constitucionais dos contribuintes (sejam eles pessoas físicas ou jurídicas) e, também, o desejo da sociedade. Esta exige cada vez mais eficiência, transparência e respeito por parte de todas as autoridades do Legislativo, Executivo e Judiciário, demandando um basta aos atos personalistas e à tese estapafúrdia de outrem.

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