No âmbito tributário esta semana será marcada pelo julgamento no STF acerca da extinção do voto de qualidade no Carf. Rememorando: antes da Lei 13.988/20 (artigo 28), que inseriu o artigo 19-E na Lei 10.522/02, havendo empate em um julgamento no Carf, o presidente de cada turma, seção etc., votaria novamente; ou seja, um dos membros do colegiado, sempre um dos indicados pelo Fisco, tinha o poder de votar duas vezes e, como regra, isso desempatava as votações em favor do próprio Fisco. Após a Lei 13.988/20, a regra mudou, acabando com esse famigerado voto duplo, e, caso ocorra empate, prevalecerá a presunção de inocência do contribuinte, absolvendo-o das acusações apontadas no auto de infração. É essa mudança normativa que se imputa como inconstitucional através das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415.
Sempre entendi como inconstitucional esta regra do voto duplo no âmbito do processo administrativo fiscal. Aqui mesmo na ConJur já escrevi sobre o assunto em 2013 (leia aqui) e retornei após a nova norma ser aprovada (leia aqui). E antes já havia escrito em periódicos acadêmicos[1]. Agora fui honrado ao ser convidado pelo Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), amigo da corte (amicus curiae) nas ADIs, para, em seu nome, apresentar memoriais (leia aqui) e, como se trata de julgamento em Plenário Virtual, gravar sustentação oral (veja aqui) – tudo nos autos.
Em síntese: no mérito, estou confortabilíssimo em afirmar que o sistema anterior, de voto duplo/de qualidade, era inconstitucional, o que potencializa o alcance do debate, pois implica em dizer que mesmo no processo administrativo-fiscal dos estados e municípios em que haja essa regra, ela é inconstitucional. E, por conseguinte, afirmo que o sistema atual, após a mudança operada pela Lei 13.988/20, é plenamente constitucional.
O julgamento já foi iniciado no Plenário Virtual do STF, nele constando apenas o voto do ministro Marco Aurélio, relator do caso, o qual pode ser dividido em duas partes: a primeira, formal, e a segunda, de mérito.
Para simplificar, comecemos pela segunda parte, do mérito. O ministro entende que a extinção do voto de qualidade e a adoção da regra do in dubio pro reo não viola a Constituição de 1988. Estamos alinhados – simples assim.
O problema está – e esta é a razão central deste texto – na primeira parte do voto do ministro, no qual ele relata um óbice formal, prévio, que o levou a votar pela inconstitucionalidade da mudança normativa realizada. Entende o ministro que houve “abuso do poder de emenda parlamentar”, que introduziu no texto um “jabuti” ou um “contrabando” normativo. Aqui o ponto a ser analisado.
O voto do ministro Marco Aurélio é que a matéria constante da MP 899/19, que foi transformada na Lei 13.988/20, através do Projeto de Lei de Conversão 2/20, tratava de transação tributária, e que a emenda parlamentar aglutinativa, que se transformou no artigo 28 da Lei 13.988/20, ora contestado, não possui pertinência temática com o assunto inicialmente proposto. Consta do voto: “eventual emenda deve ter conexão com o diploma editado pelo presidente da República”. Nesse sentido, prossegue o ministro, “não há conexão da matéria com o texto original”.
Seguramente esse argumento do ministro merece todo o respeito, bem como quem entende no mesmo sentido, porém não está presente no caso concreto. É necessário distinguir (1) a tese exposta pelo ministro, com a qual concordo, (2) da análise do caso ao qual essa tese foi aplicada, pois, em concreto, essa tese não se aplica ao caso. Não se está diante de uma impertinência temática, por várias razões.
Primeira: os precedentes invocados não são adequados ao caso. Existem dois sobre o assunto, ambos envolvendo a MP 472, que tratava de incentivos fiscais setoriais. Na ADI 5127, relatada pelo ministro Fachin, foi declarada inconstitucional uma emenda parlamentar que introduziu normas sobre a profissão de contabilista, e na ADI 5012, relatada pela ministra Weber, foi declarada inconstitucional emenda parlamentar que criou a Floresta Nacional Bom Futuro, no Estado de Rondônia. Nestes dois casos é facilmente demonstrável a impertinência temática, justificadora da declaração de inconstitucionalidade.
Segunda, ampla: há correlação temática entre a matéria original e a emenda, pois tudo se refere ao direito tributário.
Terceira, mais específica: há correlação temática fina entre a matéria original, que trata de transação tributária, e a extinção do voto de qualidade, pois, em ambas as situações, o que se busca é a redução da litigiosidade fiscal em nosso país.
Quarta: não se trata de emenda parlamentar individual, mas aglutinativa, o que aponta para um debate parlamentar e uma convergência de vontades políticas no sentido em que o texto foi apresentado e aprovado.
Quinta: há um risco iminente a ser considerado nessa análise, qual seja, o de se reduzir substancialmente o âmbito da liberdade do legislador, afinal, o lócus adequado para a criação de normas é o Poder Legislativo, e a amarra que se aponta, caso se torne muito estreita, acarretará muitas dificuldades para a correta implementação da harmonia entre os Poderes, na forma do artigo 2º da Constituição.
Logo, e decorrente deste último item, ao invés de se estar defronte a uma situação de “abuso do poder de emenda parlamentar”, se está defronte a uma constitucional e legítima competência para legislar pelo Poder Legislativo. Onde está o abuso?
O que ocorreu durante o trâmite legislativo foi o exercício do princípio democrático, ínsito ao Congresso Nacional. O voto do ministro, neste tópico, acaba por reforçar a concentração de poderes no Poder Executivo, o que vai exatamente contra o artigo 2º, caput, da Constituição. O STF não pode funcionar como instância revisora de decisões políticas estabelecidas no seio do Poder Legislativo, sob pena de invasão de funções – e, aí sim, perverter a separação de Poderes.
Para tornar curta uma longa história, é positivo que tenhamos nos afastado da época das “caudas orçamentárias”, também chamadas de “orçamentos rabilongos”, onde diversas matérias eram enxertadas durante o trâmite legislativo da lei orçamentária. Porém o espectro dessa análise de exclusividade normativa, a exigir rigorosa pertinência temática, tal como se vê no voto do ministro Marco Aurélio, pode gerar novos problemas, como por exemplo, na EC 109/21, que, em sua origem, não previa o artigo 2º, que traz novo calote de estados e municípios ao pagamento de precatórios. Exatamente por isso que, a depender do rigor exegético dessa pertinência temática nas ADIs sobre o voto de qualidade do Carf, eventual precedente no sentido exageradamente restritivo, pode desbordar para muitos outros casos. Aliás, a ADI 6752, recém proposta sobre o trâmite legislativo da EC 109, está fortemente ancorada no argumento de “jabuti normativo”, e aguarda análise do ministro Nunes Marques.
Sobre esse assunto parecem-me mais adequadas as decisões do STF na linha de que “ato interna corporis não está sujeito ao controle judicial”, posição que é dominante naquela corte (ver, por todos, com indicação de precedentes: MS 25.144 AgR, relator ministro Gilmar Mendes).
No caso, não há “abuso do poder de legislar”, mas legítimo exercício de competência normativa. Vide, por todos, o voto do ministro Celso de Mello na ADI 2.551, citado pelo ministro Marco Aurélio na ADI 6.211, que dirige suas atenções à proporcionalidade e à razoabilidade das normas. No caso, a nova norma reequilibrará o jogo de forças naquele órgão julgador administrativo, como se viu no abuso de autoridade ocorrido semana passada pelo conselheiro do Fisco (no caso, o presidente de Turma) coagindo os conselheiros dos contribuintes, que desejam votar no sentido de distinguir a aplicação de uma súmula do próprio Carf. Foram ameaçados de sofrer processo administrativo disciplinar em razão desse exercício de voto.
Nas ADIs sob análise, não há nem impertinência temática, e nem houve abuso de emenda parlamentar. O trâmite foi correto e também no mérito a norma está correta. As ADIs não têm amparo constitucional para prosperar.
[1] Uma versão mais completa dos argumentos pode ser encontrada em: SCAFF, Fernando Facury. Processo fiscal, princípio inquisitivo e teoria da prova ou porque a execução fiscal deve ter como legislação subsidiária o CPP e não o CPC. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2010. v. 14, p. 72-89. ISBN: 857500252. E também: SCAFF, Fernando Facury. In dubio pro contribuinte e o voto de qualidade nos julgamentos administrativos-tributários. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, v. 220, p. 21-38, 2014. ISSN: 1413-7097.
(ConJur)