Companhias incluem agora profissionais neurodiversos

O Brasil tem cerca de 2 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), apontam as estimativas, que não trazem informações sobre a parcela de adultos com essa condição empregados. Ainda que não haja dados, algumas empresas começaram a olhar para a questão e passaram a incluir em suas políticas de diversidade e inclusão as pessoas neurodiversas – aquelas com autismo, dislexia, disgrafia, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e síndrome de Tourette, entre outras condições. “As empresas estão começando a olhar para esse tipo de diversidade”, comenta Marcelo Vitoriano, diretor geral da Specialisterne Brasil, organização social dinamarquesa, com presença em mais de 20 países, que se dedica à inclusão profissional de pessoas com autismo e outros diagnósticos na neurodiversidade. “Temos tido contato com grandes corporações que tinham todos os pilares de diversidade e inclusão, mas nenhuma ação para neurodiversidade.”

Desde 2016, a Specialisterne Brasil inseriu no mercado de trabalho 170 pessoas neurodiversas. “É algo ainda novo, e temos batalhado para levar informação para as empresas se conscientizarem de que é preciso ter a neurodiversidade na política de diversidade e inclusão, se não ela será apenas parcial”, diz Vitoriano.

A SAP tem um programa de inclusão de pessoas com TEA, que começou em 2013 globalmente e dois anos depois chegou ao Brasil. A iniciativa ajudou a abrir posições específicas para esse perfil de profissional e com ciclos de suporte após a admissão.

Eliane Demitry, gerente de recursos humanos da SAP Brasil e responsável pelo programa SAP Autism at Work, explica que a companhia começou o projeto focando em oportunidades na área de programação e desenvolvimento. “Mas no Brasil já tínhamos pessoas com autismo no administrativo, e depois tivemos na área de suporte a vendas e pré-vendas, que envolve a preparação do material que será apresentado ao cliente. Percebemos que eles são muito bons nisso”, diz.

De forma geral, a pessoa com autismo pode apresentar dificuldades de relacionamento, então não costuma ser indicado que trabalhe na área de vendas ou comercial, por exemplo, quando terá que lidar com pessoas de fora da organização e com muitas situações de imprevisibilidade. Já a capacidade de concentração e atenção aos detalhes de quem tem TEA costuma ser superior à de pessoas neurotípicas, por isso trabalhos que envolvam essas habilidades são os mais indicados.

Na SAP, boa parte dos profissionais autistas atuam na área de desenvolvimento de software e o laboratório da multinacional em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, já tem um programa estruturado para selecionar pessoas com TEA. “A própria área de recrutamento faz o processo de seleção e conta com o coaching de uma consultoria externa especializada”, explica Demitry. “É fundamental ter esse apoio. O sucesso da inclusão depende de ter um suporte dentro da empresa.”

Demitry explica que a própria entrevista de seleção precisa ser adaptada, porque se for feita da forma convencional muitos profissionais com TEA não passam adiante, em função da forma de comunicação exigida. “Fazemos uma entrevista diferente, pois entendemos como a pessoa neurodiversa pode ser diferente nessa etapa”, diz a executiva. Antes da entrevista, ela continua, é importante fazer a sensibilização do gestor, passar conhecimento sobre o espectro do autismo, possíveis limitações e barreiras que ele possa enfrentar no dia a dia ao receber as pessoas com TEA. O segundo desafio, diz Demitry, é a adaptação do time. “É importante passar um conhecimento do que é o espectro, de como é trabalhar com essa pessoa, o que ela pode apresentar de características diferentes e como lidar com isso”, afirma.

Atualmente, a SAP emprega 23 pessoas com autismo no Brasil, que trabalham não somente em áreas técnicas como desenvolvimento de soluções, suporte às áreas de vendas e pré-vendas, mas também em RH, atendimento e facilities. Globalmente, são cerca de 200, em 16 escritórios, trabalhando em 25 funções diferentes.

Além de ter um papel social, a inclusão de pessoas neurodiversas nas empresas traz um olhar diferente para o negócio, como todo tipo de diversidade. Demitry acrescenta ainda que costumam ser pessoas com muita objetividade e foco no trabalho. “Começam algo e vão até o fim, com muita atenção a detalhes”, diz. “Temos depoimento de um gestor que dimensionou um trabalho de checagem de dados para três meses, pensando em uma pessoa neurotípica, e o funcionário neurodiverso fez em três semanas.”

Xavier Serres, diretor de TI da Danone, conta que quando teve contato com pessoas neurodiversas, em 2019, e conheceu melhor a capacidade profissional de quem tem autismo, percebeu que havia nesse perfil uma possibilidade de contribuição para sua equipe. “A percepção inicial [antes de conhecer pessoas com autismo] era que eram pessoas com uma falta de capacidade. Mas não é uma deficiência, são características”, relata. “São pessoas com grande capacidade mental e às vezes usam mais essa habilidade que os neurotípicos, por terem mais foco e concentração.”

Serres levou, então, o tema para o RH da Danone e a companhia abriu uma primeira posição para profissionais neurodiversos no time de service desk. O trabalho consistia em preparar os computadores com as aplicações pré-determinadas para entregá-los aos funcionários da multinacional. “Essa pessoa está na empresa há quase três anos”, conta Serres. “Nos surpreendeu muito, porque devido à característica de foco, a quantidade de computadores que essa pessoa entregava por dia era superior. Nunca pula um passo, porque segue o roteiro.”

O diretor de TI conta que a equipe abraçou a iniciativa sem ressalvas, mas enfatiza a necessidade de preparar o time e de ter uma espécie de padrinho para acompanhar o novo funcionário com autismo. “As pessoas neurodiversas têm características muito relevantes, alta capacidade de concentração, atenção aos mínimos detalhes, e algumas áreas precisam muito desse perfil. Não olhar para essas pessoas não faz sentido”, complementa Letícia Araújo, head de diversidade, cultura e inovação de recursos humanos da Danone.

Hoje, a companhia emprega três pessoas com autismo. “Temos previsão de expandir pelos resultados que a gente vem acompanhando”, afirma Araújo.

O BV começou a recrutar pessoas neurodiversas em 2019 – foi um teste inicial com três funcionários, explica Lais Parada, gerente de pessoas do banco. Em 2020, mais sete foram selecionados. “Existe todo um preparo, com comunicação e interação social adequadas”, afirma. “O gestor é preparado, por exemplo, para fazer perguntas de forma adequada na entrevista. Depois, quando o profissional entra na empresa, a equipe é preparada, para saber como lidar, como o novo colaborador pode reagir. Precisa usar uma comunicação mais direta.”

Os profissionais neurodiversos têm trabalhado no BV em áreas que precisam de concentração, diz Parada, “erram pouco porque são muito atentos”. “Quando a gente fala de diversidade, fala de todas. Esse é um dos públicos que agrega, a gente consegue atrair melhores talentos, gera orgulho de pertencer nos demais funcionários.”

Na EY, a inclusão de pessoas neurodiversas começou em 2020, quando parte da equipe de tecnologia participou do Autismo Tech, da FIAP – um hackathon com a missão de aumentar a inclusão de pessoas neuroatipícas no mercado de trabalho por meio da tecnologia. “O time viu que havia talentos bacanas diagnosticados com TEA, e pensou por que não contratar?”, relata Luisa Brazuna, líder de diversidade, equidade e inclusão e de responsabilidade corporativa da EY para a América do Sul. Naquele momento, ela diz, a companhia contratou duas pessoas, e depois resolveu ampliar o programa. “A área de TI é carente de mão de obra e existem profissionais maravilhosos que não estão sendo incluídos.”

A consultoria parceira da EY nesse programa orienta como deve ser a entrevista de emprego para ajudar o profissional com autismo a se colocar quando ele precisa, e prepara o time para receber esse profissional, “para ser uma experiência válida e para que ele tenha carreira lá dentro”, comenta Brazuna.

Ela explica que o funcionário com TEA recebe um “buddy”, hierarquicamente do mesmo nível que ele para acompanhá-lo, mostrar como acessa o sistema, onde é o banheiro, e para trocar ideia como um par sempre que precisar. “Tem que ter um cuidado para fazer o trabalho assistido”, diz Brazuna. “Se não prepara o gestor, ele não vai saber o que fazer.”

Em janeiro, começa um novo grupo de profissionais com TEA na EY – são seis pessoas que vão atuar em tecnologia. “Contratamos os seis que entrevistamos, porque os profissionais são supercapacitados”, diz a executiva. “Pelo viés que a gente tem, não percebemos que são pessoas inteligentes, capazes e amáveis. Tem que se desafiar a conhecer pessoas diferentes.”

Vitoriano, da Specialisterne, explica que o espectro do autismo é amplo, e as pessoas com TEA têm diferentes características e necessidade de suporte. De forma geral, ele diz, são pessoas detalhistas, com raciocínio lógico diferenciado, capacidade de atenção e concentração, hiperfocadas. “Às vezes a pessoa não vai conseguir olhar no olho, pode ter dificuldade de comunicação. Pode ter que usar fone por ter uma hipersensibilidade, e necessitar de comunicação diferente”, avisa. “Quando as empresas adaptam seus processos, preparam as equipes para receber os profissionais neurodiversos e acompanham a performance, as pessoas tendem a ter desempenho na média para cima. Mas é sempre importante tomar o cuidado de não criar o estereótipo de super-herói.”

Do ponto de vista do ambiente de trabalho, a inclusão de pessoas neurodiversas costuma melhorar a comunicação – já que ela precisa ser mais assertiva para esse perfil de profissional – e aumentar o orgulho de trabalhar na empresa. “A cultura fica mais humanizada, porque a convivência com pessoas neurodiversas proporciona um ambiente mais colaborativo e humano”, conclui.

(Valor)

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