Reflexões sobre pena de perdimento de bens e aplicação dos acordos internacionais

Preliminarmente cumpre esclarecer que é imperioso a regulamentação da pena de perdimento de bens diante das mudanças do contexto mundial que o país está inserido. Nesta linha de pensar, o Brasil assinou vários acordos internacionais que estão vigentes e que devem ser regulamentados e aplicados, conforme passamos a demonstrar.

Com efeito, não pretendemos aqui esgotar a matéria, mas tão somente levar a questionamento e refletir sobre as mudanças necessárias sobre tema tão controverso e que já foi, ao longo de tantos anos palco de diversas controvérsias.

Nesse contexto, o presente artigo visa tão somente refletir sobre o cumprimento da Convenção de Quito – Decreto nº 10.276 de 13 de março de 2020, juntamente com o Acordo de Facilitação de Comércio que impõe o duplo grau de jurisdição e a facilitação de comércio.

A pena de perdimento e o entendimento do STF atual

Preliminarmente cumpre esclarecer que a legislação que regulamenta a pena de perdimento de bens é o artigo 23 e 27 do Decreto – Lei nº 1.455/76, artigo 689 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009) e artigo 105 do Decreto – Lei nº 37/66, além da Lei nº 10.637/2002, artigo 39. O Regulamento Aduaneiro no artigo 689 que dispõe:

Aplica-se a pena de perdimento de mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário”:

Como é sabido, a pena de perdimento de bens é aplicada ausente o duplo grau de jurisdição, na via administrativa, pois é previsto a decisão administrativa final, em instância única. Sendo o prazo para apresentação de defesa de 20 dias, nos termos do artigo 27 do Decreto – Lei 1.455/76.

Portanto, o procedimento legal, não segue o rito e nem os prazos do processo administrativo fiscal, previsto no Decreto 70.235/1972. Assim, a mesma instância que lavra o Auto de Infração deverá julgar o processo em instância única.

A pena de perdimento da mercadoria é a sanção administrativa mais severa no âmbito aduaneiro e decorre do cometimento de uma infração, de ações que causem “dano ao erário”.

No entanto, para que o Dano ao Erário possa ser caracterizado (i) é necessário identificar a conduta infracional tributária ou financeira, como lesiva ao patrimônio público e quem a cometeu; (II) o resultado infracional há de ser quantificado e, tanto quanto o imposto, expresso em pecúnia, elemento definidor da intensidade do dano causado e; (iii) tal dano ou prejuízo fiscal há de ser constituído no mundo das obrigações e nessa condição ser exigível, além de identificar o sujeito passivo que cometeu.

Veja a jurisprudência neste sentido:

ADMINISTRATIVO – PENA DE PERDIMENTO – ART. 23 DO DECRETO-LEI 1455?76 – DANO AO ERÁRIO INEXISTENTE – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

A jurisprudência desta eg. Segunda Turma firmou o entendimento de que se deve flexibilizar a pena de perdimento de bens, quando ausente o elemento danoso. Recurso Especial conhecido, mas improvido.

(STJ, REsp 331.548, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, j. 16/02/2006).

De forma sintética, o entendimento atual é que não se comprovando o dano ao erário através do elemento danoso: comprovação da má-fé ou dolo não é cabível a aplicação da máxima de perdimento de bens no âmbito aduaneiro.

Da Inconstitucional da Pena de Perdimento e Ausência do “due process of law”

Entendemos que a legislação acima, que dispõe sobre a pena de perdimento especialmente o artigo 27 do Decreto – Lei nº 1.455/76, fora revogado por força da Lei Magna promulgada no dia 05 de outubro de 1988, que assegurou DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO, como corolário dos princípios fundamentais dos direitos e garantias individuais e coletivos, expresso no artigo 5º, inciso LIV e LV. Dispõe o art. 5 da CF:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal

Ademais, o legislador constitucional consagrou os casos estritos em que é possível a aplicação da pena de perda de bens, quais sejam: a desapropriação (art. 5º, XXIV), o uso por autoridade no caso de iminente perigo público (art. 5º, XXV) e a pena de perda de bens por prática criminosa (art. 5º, XLV e XLVI, “b”), não pode o legislador ordinário inovar, prevendo outras hipóteses de perda de bens, em que há o esvaziamento do núcleo essencial do direito de propriedade, sem que haja justificativa constitucional para tanto.

No entanto, este não foi o entendimento do STF que declarou a legalidade da pena de perdimento ausente o duplo grau de jurisdição. Veja neste sentido referida decisão no RE nº. 95.693/RS, Rel. Min. Alfredo Buzaid:

“TRIBUTÁRIO. PENA DE PERDIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. CABIMENTO EM PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. INCOMUNICABILIDADE ENTRE AS ESFERAS CRIMINAL E ADMINISTRATIVA. MERCADORIAS OCULTADAS. PERDIMENTO.

1.O Egrégio Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade da pena de perdimento por danos causados ao erário, por haver previsão expressa n CF de 1967 (RE nº 95.693/RS Rel. Min. Alfredo Buzaid). A falta de previsão expressa na CF/88 não importa concluir por sua inconstitucionalidade ou não-recepção. Através do devido processo legal, o direito de propriedade pode ser restringido, porque não-absoluto. A validade do perdimento é nossa própria tradição histórica de proteção ao erário. A aplicação do perdimento obedece à razoabilidade, pois a sua não-aplicação implica aceitar que alguns se beneficiem às custas de toda a sociedade.

A pena de perdimento, após a CF/88, é plenamente aplicável também no processo administrativo fiscal.

As esferas penal e administrativa são independentes quanto à pena de perdimento aduaneiro, realidade que permite soluções díspares para o mesmo caso. A sentença penal na espécie julgou improcedente a acusação aplicando o princípio da insignificância, o que denota a necessidade de proteção penal apenas aos casos mais graves, cujos bens jurídicos têm maior relevância, deixando às esferas cível e administrativa a consequente e adequada regulação jurídica.

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal tem se orientado pela constitucionalidade da aplicação da pena de perdimento em matéria aduaneira, orientação essa que é seguida pelos Tribunais Regionais Federais, e quando há algum recurso extraordinário nessa matéria no Supremo Tribunal Federal, a questão da constitucionalidade já não passa mais a ser analisada por questões do entendimento ser praticamente pacífico, e o Recurso Extraordinário é de plano negado, principalmente em razão da Súmula 279 do STF.

Da aplicabilidade dos acordos internacionais a pena de perdimento

Preliminarmente importante lembrar que o art. 98, prevê expressamente que os tratados revogam a legislação tributária interna, verbis:

“Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha. ”

Neste contexto, em dissonância à decisão do STF acima, atualmente temos internalizado em nosso ordenamento jurídico, pelo Decreto nº 10.276 de 13 de março 2020, a Convenção de Quioto que dispõe:

CAPÍTULO 10

RECURSOS EM MATÉRIA ADUANEIRA

DIREITO DE RECURSO

10.1. Norma

A legislação nacional deverá prever o direito de recurso em matéria aduaneira.

10.2. Norma

Qualquer pessoa que seja diretamente afetada por uma decisão ou omissão das Administrações Aduaneiras terá o direito de interpor recurso.

10.3. Norma

A pessoa diretamente afetada por uma decisão ou omissão das Administrações Aduaneiras deverá, após terá apresentado um pedido às Administrações Aduaneiras, ser informada dos fundamentos dessa decisão ou omissão dentro do prazo fixado pela legislação nacional. Poderá, subsequentemente, interpor ou não recurso.

10.4. Norma

A legislação nacional deverá prever um direito de recurso em 1ª instância perante as Administrações Aduaneiras.

10.5. Norma

Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira.

10.6. Norma

Em última instância, o requerente deverá ter direito de recurso para uma autoridade judicial.

Sobre a entrada em vigor do referido Protocolo, dispõe o Decreto acima, que entrará em vigor três meses depois de quarenta Partes Contratantes o terem assinado sem reserva de ratificação ou terem depositado o seu instrumento de ratificação ou de adesão. Outros entendem que, a entrada em vigor ocorreria somente em 2022, tendo em vista o prazo de 36 meses. No entanto, tal Decreto já encontra-se publicado e portanto já foi incorporado em nosso ordenamento jurídico vigente e não pode ser desprezado.

Ademais, o Brasil também assinou o Acordo de Facilitação do Comércio – DECRETO Nº 9.326, DE 3 DE ABRIL DE 2018 que dispõe:

ARTIGO 4: PROCEDIMENTOS DE RECURSO OU REVISÃO

Cada Membro assegurará que qualquer pessoa para quem a Aduana emita uma decisão administrativa 4 tenha o direito, dentro de seu território, a:

(a) uma revisão ou recurso administrativo a uma autoridade administrativa superior ou independente da autoridade ou repartição que tenha emitido a decisão; e/ou

(b) uma revisão ou recurso judicial da decisão.

A legislação de um Membro poderá exigir que uma revisão ou recurso administrativo seja iniciado antes de um recurso ou revisão judicial.

Cada Membro assegurará que os seus procedimentos de recurso ou revisão sejam conduzidos de forma não discriminatória. (…)

Da legislação acima, depreende-se que o país faz parte deste novo contexto jurídico mundial, de facilitação e agilização do comércio internacional e nesta linha assinou os Acordos Internacionais, além de implantar o Programa OEA – Operador Econômico Autorizado.

Importante salientar que o Poder Judiciário também já vem se posicionando sobre estas questões, que começam a ser indagadas pelos contribuintes. Neste sentido a sentença, em Mandado de Segurança (Itajaí) 5000928-20.2020.4.04.7208/SC, concedeu a segurança aplicando o Decreto nº 10.276/2020, para que a Impetrante tivesse assegurado seu direito ao rito do processo administrativo fiscal – Decreto 70.235/1972.

Por outro giro, já tivemos decisão do TRF 4, nos autos do Processo 5033880-45.2020.4.04.0000/SC no seguinte sentido:

“O texto revisado do Protocolo de Revisão da Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros – Convenção de Quioto, concluído em Bruxelas, em 26 de junho de 1999, está disciplinado no Decreto nº 10.276, de 13 de março de 2020, que foi publicado em 16/03/2020, data que entrou em vigor.

Dentre os objetivos da alteração da Convenção estão a simplificação e harmonização dos regimes aduaneiros e das práticas aduaneiras, o que constitui um dos objetivos essenciais do Conselho de Cooperação Aduaneira, contribuindo assim eficazmente para o desenvolvimento do comércio internacional.

O artigo 10.5, da alteração legislativa, garante a interposição de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira, no entanto, tal norma, conforme alega a requerente, ainda não está produzindo efeitos, uma vez que não decorreu o prazo de 36 meses para implementação das disposições, consoante previsão contida no art. 13-1 do Decreto nº 10.276/2020.

Nesse contexto, é possível admitir a probabilidade do direito alegado pela União.

No entanto, não vejo, no caso, situação excepcional que autorize a cessação da eficácia da sentença no que pertine a manutenção da decisão de não destinação das mercadorias apreendidas, pelo menos, até o julgamento da apelação pelo Colegiado.

Assim, indefiro o pedido de antecipação da tutela recursal e o pedido de efeito suspensivo. ”

Diante de todo exposto, a regulamentação da legislação, já internalizada em nosso ordenamento jurídico se torna urgente, pois depende de alteração da legislação referente a aplicação da pena de perdimento de bens, para permitir o devido recurso administrativo e duplo grau de jurisdição e contraditório, alinhando-se as diretrizes internacionais e a própria legislação vigente em nosso País.

Saliente-se que mesmo para aqueles que entendem que a referida legislação somente entraria em vigor em 2022, é sabido que a mudança da legislação em nosso país é morosa e burocrática, devendo ser tomadas as providências cabíveis neste sentido desde já. Tal mudança legislativa levará a diversos questionamentos, como por exemplo, cabe recurso, mas a qual instância administrativa, seria realmente ao CARF, seguiria ao rito do processo administrativo fiscal – Decreto nº 70.235/1972.

Sob qualquer ângulo, depreende-se que não é mais legítima a aplicação desta penalidade severa que é o perdimento de bens em instância única, devendo nossa legislação ser revisionada e alterada, não podendo os Poderes Executivo e Legislativo, bem como o Poder Judiciário, ficarem omissos diante das novas mudanças legislativas, inserindo o Brasil no novo contexto mundial.

ANGELA SARTORI Advogada e consultora de empresas, com mais de 20 anos de experiência nas áreas aduaneira e tributária, Juíza do TIT- Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de SP, foi Conselheira do CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, 3ª Seção, Especialista em Direito Tributário pela PUC – SP ( Cogeae), Extensão em Direito Internacional pela FGV-GVlaw, autora e palestrante em diversos eventos.

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