No último dia 20 de fevereiro, com o trânsito em julgado do ARE nº 1.527.985-ES, relatado pelo ministro Roberto Barroso sob o rito da repercussão geral, encerrou-se por completo a controvérsia instaurada no cenário político-jurídico brasileiro com a publicação dos Decretos 11.321/2022 e 11.322/2022, que reduziram pela metade as alíquotas aplicáveis ao Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), à Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Histórico
A discussão é amplamente conhecida: no dia 30 de dezembro de 2022, uma sexta-feira e último dia útil do ano, o vice-presidente da República, no exercício do cargo de presidente, publicou os mencionados decretos, reduzindo as alíquotas das respectivas contribuições, para que passassem a vigorar com os novos valores a partir de 1º de janeiro de 2023.
Com a posse do novo governo, a Presidência da República editou o Decreto nº 11.374/2023, revogando os Decretos 11.321/2022 e 11.322/2022 e repristinando o texto do Decreto nº 8.426/2015 e o do Decreto nº 10.615/2021, a fim de restabelecer as alíquotas previamente alteradas aos patamares originais.
Diante desses elementos, pergunta-se: há inconstitucionalidade no artigo 4º do Decreto nº 11.374/23, por não haver previsto um período de vacatio legis igual ou superior a 90 dias e ter determinado sua incidência na mesma data da publicação?
À primeira vista, a resposta seria: sim, houve inconstitucionalidade por violação à regra da anterioridade nonagesimal prevista no artigo 150, inciso III, alínea “c”, da CF/88; já que o Decreto nº 11.374/23 promoveu a repristinação da redação original do Decreto nº 8.426/15 na mesma data em que entrou em vigor, e essa repristinação teria causado um aumento da alíquota em relação ao ato normativo imediatamente anterior.
Esse movimento normativo suscitou diversas alegações de inconstitucionalidade por parte de alguns contribuintes, sob o fundamento de que a repristinação das alíquotas anteriores implicaria um descumprimento à regra da anterioridade tributária, principalmente à anterioridade nonagesimal prevista pelos artigos 145 e 195, §6º, da Constituição.
A questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, em relação ao PIS/Cofins, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 84-DF, apresentada pelo próprio presidente da República. Já em 8 de março de 2023, o ministro Ricardo Lewandowski acolheu a medida cautelar nos autos da ação, suspendendo a eficácia das decisões judiciais que tivessem afastado a aplicação do Decreto nº 11.374/2023 e possibilitado o recolhimento da contribuição para o PIS/Cofins pelas alíquotas reduzidas.
O Plenário da corte viria a confirmar a liminar concedida em 9 de maio de 2023, por maioria dos ministros e com voto contrário do ministro André Mendonça e da ministra Rosa Weber. A decisão final seria proferida apenas em 14 de outubro de 2024, quando o tribunal deu procedência à ação declaratória, fixando a seguinte tese: “A incidência das alíquotas de 0,65% e 4% da contribuição ao PIS e da Cofins previstas no art. 1º do Decreto n. 8.426/2025, repristinando pelo Decreto n. 11.374/2023, não está sujeita à anterioridade nonagesimal”.
ARE nº 1.527.985-ES
A despeito da posição assumida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 84-DF, havia quem nutrisse a esperança de que o tribunal, ao julgar o ARE nº 1.527.985-ES, pudesse promover um overruling de suas razões e indicasse um caminho para a reabertura da discussão.
O caso se referia a um pedido do Sindicato de Exportação e Importação do Estado do Espírito Santo (Sindiex), para que lhe fosse permitido recolher o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante com base nas alíquotas reduzidas do Decreto nº 11.321/2022.
Tendo o caso sido escolhido para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, o Supremo Tribunal Federal voltou a rediscutir se haveria incidência da regra de anterioridade tributária à repristinação das alíquotas do AFRMM, pelo Decreto nº 11.374/2023.
Ao julgar o recurso, o STF se manteve coerente com as razões apresentadas no julgamento da ADC nº 84-DF, negando a pretensão do contribuinte e afirmando a seguinte tese: “A aplicação das alíquotas integrais do AFRMM, a partir da revogação do Decreto nº 11.321/2022 pelo Decreto nº 11.374/2023, não está submetida à anterioridade tributária (exercício e nonagesimal)”.
As razões adotadas pelo STF no julgamento do ARE nº 1.527.985-ES não diferem daquelas proferidas na ADC nº 84-DF. Em ambos os casos, o tribunal se apoia na ideia de que a repristinação das alíquotas em questão não teria majorado os tributos, já que as alíquotas anteriores seriam de amplo conhecimento dos contribuintes, e que os decretos que haviam disciplinado as alíquotas reduzidas foram revogados no mesmo dia em que entraram em vigor.
É preciso ressaltar que a finalidade da regra da anterioridade geral (artigo 150, inciso III, alínea “b”, da CF/88) e da anterioridade nonagesimal (artigo 150, inciso III, alínea “c”, da CF/88) é a garantia da segurança jurídica; no caso, da segurança jurídico-tributária dos contribuintes. Trata-se de uma salvaguarda contra surpresas.
Nas palavras de H. Ávila [1]: “[…] a ideia de anterioridade está atrelada à noção de duração: a salvaguarda contra a surpresa exige periodicidade, de modo a permitir certa consistência ao presente“. Assim, o período sujeito à anterioridade ficaria protegido de alterações, protegendo os agentes e lhes dando segurança: “O princípio da segurança jurídica exige um estado de calculabilidade, para cuja realização é necessária a capacidade de antecipação e de medição de um espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos, próprios e alheios, ou a fatos“.
Oportunidade perdida
O Supremo Tribunal Federal, talvez preso pelo próprio discurso que se instaurou ao redor dos mencionados decretos, limitou-se a enfrentá-los a partir de uma perspectiva dirigida a aferir a incidência ou não da anterioridade tributária, perdendo a oportunidade de fornecer uma resposta contundente para o que claramente se apresentava como um abuso no poder normativo.
Pode-se até dizer que a deslealdade e a violação à segurança jurídica não se deram em face do contribuinte, que teria se beneficiado com o Decreto nº 11.322/22, mas em face da administração futura — e da República como um todo.
A própria Presidência da República suscita a questão na ADC nº 84-DF, quando aponta que os Decretos 11.321/2022 e 11.322/2022 representaram “abuso do poder de desoneração tributária, vez que exercido sem transparência, sem justificação adequada e de modo afrontoso aos deveres de cooperação que devem reger as relações institucionais de transição em um Estado Democrático de Direito”.
A falta de planejamento e a mudança legislativa no final da administração, ciente de que o ato provocaria um efeito prejudicial à União e que precisaria ser lidado por uma nova administração, que já apresentava constrições orçamentárias e financeiras, dificilmente poderia ser uma atitude coerente com o contribuinte.
Existe uma sobreposição de normas no caso em questão. E se trata de um imbricamento bastante relevante, considerando que a redução das alíquotas vigorou por apenas um dia e que o Decreto nº 11.374/23 apenas repristinou a redação anterior.
Pelo prisma da segurança jurídica é verdadeiramente difícil dizer se esse princípio foi prejudicado pela edição do novo Decreto nº 11.374/23. O contrário, por outro lado, apresenta-se de outra forma. Além de constituir-se como uma conduta ostensivamente abusiva, que beira a uma espécie de ato emulativo administrativo, seria bem mais razoável falar em violação à segurança jurídica pelo Decreto nº 11.322/22 — ou até mesmo às normas de probidade fiscal e legislativa [2].
O problema é enfrentado apenas obiter dictum no voto do ministro Cristiano Zanin, que reconheceu haver uma incompatibilidade do ato normativo exarado pelo vice-presidente da República em exercício perante os princípios da administração pública e do Estado Democrático de Direito e, em particular, às regras aplicáveis à transição de governo, definidos pelo Decreto nº 7.221/2010.
Trata-se de uma questão que demanda consciência de que as normas jurídicas não são meras fórmulas. Não basta que o operador encontre uma correspondência direta entre a hipótese normativa abstrata e o fato sob análise.
Certamente isso é necessário, mas insuficiente.
Cabe ao intérprete conferir se as razões fundamentais por trás das normas estão sendo cumpridas com sua aplicação; não se trata apenas de conferir o valor que informa a norma, mas averiguar se a função que dada norma deveria ocupar no sistema jurídico está sendo cumprida pela aplicação.
Uma aplicação formulaica de norma que desconsidera o sistema e as múltiplas funções que as normas exercem nele, está fadada a distorcer o funcionamento da República, pois irá promoverá uma adaptação torta das relações intersubjetivas.
A ideia de abuso de direito e, mais precisamente, de abuso de poder é uma categoria inerente à teoria geral, pois pressupõe o reconhecimento de balizas para o exercício do poder político e jurídico. No contexto do Estado Democrático de Direito, os órgãos estatais não estão apenas vinculados pelas disposições normativas, pois devem também incorporar a realização dos direitos fundamentais e dos princípios fundamentais na própria delimitação de seus atos.
Dito isso, a publicação dos Decretos 11.321/2022 e 11.322/2022 se caracterizou como típico ato emulatório, destinado a impor restrições financeiras deliberadas ao governo subsequente no exclusivo intuito de lhe prejudicar. Note-se que a edição de dispositivos normativos, particularmente os dispositivos tributários, devem ser limitados pelo Princípio Republicano, já que a instituição de tributos deve ser exercida dentro de parâmetros democráticos, de forma a se legitimar na comunidade política.
O enfrentamento dos Decretos 11.321/2022 e 11.322/2022 pelo prisma da anterioridade escamoteia o problema, pois evita tratar o caso como abuso de poder caracterizado por uma típica manifestação patrimonialista, pela qual o agente político se apropria das instituições da República a fim de impor vínculos personalizados de governo e partido político a atividades que deveriam ser impessoais.
Ainda que — do ponto de vista tributário — as consequências possam ser semelhantes, o afastamento da regra de anterioridade não equivale à declaração de inconstitucionalidade dos mencionados decretos, já que a evitação da via da inconstitucionalidade não reafirma os princípios fundamentais necessários à manutenção do corpo político.