Advogados criticam nota da Receita que defende voto de qualidade e fim da paridade

Advogados reagiram, nesta segunda-feira (30/01), à divulgação de uma nota pela Receita Federal em que o órgão nega que o voto de qualidade, critério de desempate restabelecido pelo governo federal no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tenha viés favorável ao fisco. No comunicado, acompanhado de uma apresentação com dados sobre os julgamentos do Carf, a Receita afirma que o desempate pró-contribuinte, critério vigente antes do anúncio da volta do voto de qualidade, só interessa aos grandes devedores. Ao JOTA, tributaristas afirmaram que a nota causou “estranheza” e traz informações “contraditórias”.

A discussão com relação ao critério de desempate no Carf se acirrou desde a edição da Medida Provisória (MP) 1.160/2023, que restabeleceu o voto de qualidade como única forma de desempatar impasses que dividem os votos dos conselheiros no tribunal administrativo.

O critério havia sido substituído pelo desempate pró-contribuinte, instituído pela Lei 13.988/20. Durante quase dois anos, em caso de empate nas turmas, o resultado favorável ao contribuinte prevalecia, a não ser nas exceções estabelecidas na Portaria 260/2020, do antigo Ministério da Economia, que incluíam casos envolvendo declarações de compensação e responsáveis solidários. Devido à alteração na forma de desempate, muitos temas tiveram reversão de entendimentos nesse período, como os relacionados a ágio interno e tributação de lucros no exterior.

Para Caio Morato, tributarista do Rayes e Fagundes, a nota causou estranheza porque representaria uma manifestação de um órgão público – a Receita – a respeito do funcionamento de outro – o Carf. “A despeito de estarem debaixo do chapéu do Ministério da Fazenda, eles [Receita Federal e Carf] são órgãos públicos totalmente independentes”, apontou.

Segundo os dados publicados pela Receita, o percentual de casos julgados em favor dos contribuintes no Carf mantém-se historicamente em torno de 40% do número de processos, independentemente do voto dos representantes dos contribuintes, o que, de acordo com o órgão, desmente a afirmação de parcialidade dos representantes do fisco.

Para o advogado Breno Vasconcelos, do Mannrich & Vasconcelos, ao divulgar o dado como justificativa para as mudanças recentes no Carf, a Receita Federal age de forma “contraditória”, uma vez que, entre essas mudanças, além do retorno do voto de qualidade, está o aumento do limite de alçada para acessar o tribunal. O governo aumentou de 60 para mil salários mínimos o valor dos processos dos quais é possível recorrer após decisão nas delegacias da Receita.

“São informações conflitantes essas de que o Carf corrige 40% dos casos e, ao mesmo tempo, se aumenta o valor de alçada para que os casos subam. Se o próprio Ministério da Fazenda reconhece que o Carf está fazendo um papel de correção de rumo, por que, então, impedir o acesso de tantos outros contribuintes?”, comentou.

Paridade

O documento também critica a composição paritária do Carf, cujas turmas são formadas por representantes do fisco e dos contribuintes em igual proporção. Na apresentação dos dados sobre o tribunal administrativo, consta que o Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou a extinção do modelo paritário.

“A participação paritária de representantes indicados por contribuintes é algo que só interessa a uma parcela muito baixa desses contribuintes, aqueles com débitos de centenas de milhões ou bilhões de reais. São esses os casos que usualmente resultam em empate”, diz a Receita.

A advogada Maria Raphaella Matthiesen, do Mannrich & Vasconcelos, observa que, embora o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, tenham feito críticas ao modelo paritário no Carf, a MP 1.160, que restabeleceu o voto de qualidade, não faz alteração na composição das turmas. Para ela, é preciso delimitar a discussão sobre as mudanças no tribunal, já que apenas o critério de desempate mudou.

“Os relatórios do Ministério da Fazenda têm mostrado muitas questões envolvendo o modelo paritário em contraposição ao modelo de outros países, sem focar no voto de qualidade. São duas questões diferentes. É preciso entender que tipo de debate estamos travando, se é com relação à composição das turmas ou à forma desempate dos julgamentos”, defendeu.

“Quando se afirma que o TCU recomendou a extinção do modelo paritário, informação extraída do Relatório de Alto Risco da Administração Pública Federal, não há recomendação da forma como está colocada. O que o TCU registra é toda uma análise do sistema tributário brasileiro, da alta complexidade, da morosidade e, ao final, o que se faz é uma recomendação para que a administração tributária avalie a conveniência de manter o modelo paritário. Análise de conveniência não é recomendação”, complementa Breno Vasconcelos.

Arrecadação

Na nota, a Receita Federal ainda associa o período de vigência do desempate pró-contribuinte, entre abril de 2020 e a edição da MP 1.160, à perda arrecadatória. Segundo a Receita, “os empates favoreceram alguns pouquíssimos contribuintes, mas em valores bilionários”.

Conforme o órgão, de R$ 24,8 bilhões referentes a casos resolvidos em favor de contribuintes, R$ 22,2 bilhões se referiram a apenas 26 empresas. “É muito importante esclarecer que a derrubada do voto de qualidade interessa a essas empresas, grandes devedoras do fisco, não à população brasileira”, diz o texto.

O comunicado afirma ainda que nas delegacias de julgamento da Receita, que são a primeira instância do contencioso administrativo fiscal, “os auditores fiscais da Receita reconheceram parcial ou totalmente o direito do contribuinte em mais de 25% dos casos”. Conforme o órgão, quando se trata de lançamento eletrônico, o reconhecimento em favor dos contribuintes ultrapassa os 50%, principalmente em relação a documentos que caíram na malha fina.

Com relação à afirmação de que o desempate pró-contribuinte beneficia apenas grandes devedores, a advogada Maria Raphaella Matthiesen entende que a Receita está igualando duas categorias distintas: a dos grandes devedores e a dos devedores contumazes.

“Da forma como está posto, todos os contribuintes acabam entrando no mesmo bolo. Grande parte dos contribuintes têm extrema cautela no recolhimento de suas obrigações tributárias. Adotam modelos super estruturados, buscam orientação da administração sobre a interpretação da legislação tributária. É preciso segregar os devedores contumazes e os demais contribuintes, que têm postura cooperativa, devem receber o tratamento adequado.”

Petrobras volta a ter liminar negada

Em meio à polêmica do retorno do voto de qualidade, algumas empresas impetraram mandados de segurança para que seus processos não sejam julgados nas sessões do Carf previstas para esta semana, de 1° a 3/02. O tribunal pautou processos bilionários, envolvendo teses que haviam sido revertidas pelo desempate pró-contribuinte.

Uma das empresas que recorreu à Justiça foi a Petrobras, que voltou a ter o pedido de liminar para adiar o julgamento de dois processos administrativos negado nesta segunda-feira (30/01). Os processos são de número 16682.722510/2015-34 e 16682.722511/2015-89. A empresa tenta adiar a análise dos casos, com valor de R$ 5,7 bilhões, enquanto a MP 1.160, que restabeleceu o voto de qualidade, não é votada no Congresso. A ação judicial corre sob o número 1001635-28.2023.4.01.0000.

A nova negativa foi do desembargador federal Hercules Fajoses, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). A Petrobras recorreu após ter a liminar indeferida em primeira instância na última quarta-feira. A decisão foi do juiz substituto Manoel Pedro Martins de Castro Filho, da 6ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal.

Ao negar o pedido da empresa, o desembargador argumentou que a possibilidade de resultado negativo no Carf e de não conversão da MP em lei são apenas “prognósticos”. “Decerto que a tese argumentativa não é de todo descabida, mas esbarra em impossibilidade material, vez que trata de prognósticos que, muito embora sejam qualificados por certo grau de possibilidade, ainda assim são prognósticos e como tais, ainda não estão materializados no mundo dos fenômenos a encontrar adequação ao caso concreto, pois, de fato, caso concreto não há”, disse.

Entre os argumentos, a Petrobras alegou que o julgamento dos seus processos – que tratam da tributação de lucros de controladas no exterior – vai marcar uma “virada de jurisprudência” no Carf pela mudança na regra de desempate.

(Jota)

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