Após três anos de discussão, o decreto do BR do Mar foi assinado pelo presidente Lula na quarta-feira (16). A medida regulamenta o uso da cabotagem no transporte de cargas entre portos nacionais. Um dos pontos mais aguardados – a regra sobre o afretamento a tempo, que mantém a bandeira estrangeira da embarcação – o governo autorizou que as empresas brasileiras de navegação afretem até três vezes mais do que sua capacidade atual de embarcações nacionais. A nova regra beneficia principalmente as embarcações sustentáveis.
O afretamento a tempo é a modalidade na qual a empresa de navegação pode trazer navios com bandeira estrangeira, o que permite a tripulação com estrangeiros, para fazer cabotagem (navegação pela costa do país), o que só é permitido a empresas nacionais e com navios com a tripulação prevalente de brasileiros.
Com a publicação do decreto nesta quinta-feira (17), a expectativa do governo é atrair mais investimentos para a cabotagem brasileira, estimular o uso de embarcações menos poluentes e reduzir os fretes em até 15%, gerando uma economia anual de até R$ 19 bilhões para empresas e consumidores. Para o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, a cabotagem tem potencial para reduzir os custos logísticos no Brasil entre 20% e 60%.
Segundo a pasta, a cabotagem representa 11% da carga total transportada por navios, e o PNL (Plano Nacional de Logística) projeta um crescimento para 15% nos próximos dez anos, impulsionado pela tendência de redução de custos. O valor médio do frete por tonelada transportada por cabotagem é 60% menor que o do transporte rodoviário e 40% inferior ao ferroviário.
O texto do decreto obtido pela Agência iNFRA define quatro cenários para a modalidade de ampliação da tonelagem com base no lastro nacional. O artigo 15 estabelece que o afretamento poderá ser de até 50% da tonelagem de porte bruto de embarcações próprias não sustentáveis, para o afretamento também de embarcações não sustentáveis.
A liberação sobe para 100% da tonelagem própria caso a embarcação brasileira seja não sustentável, mas o afretamento envolva um navio sustentável. Na terceira regra, o multiplicador chega a 200% se o lastro for formado por embarcações sustentáveis, mas o afretamento for de navio não sustentável. No limite, o decreto permite um afretamento de até 300% da tonelagem de porte bruto de embarcações próprias sustentáveis, quando se tratar de navios igualmente sustentáveis.
O afretamento a tempo também poderá ser utilizado em outras situações, como: substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no País (na proporção de até 200%); substituição de embarcação de tipo semelhante em construção no exterior (até 100%); atendimento exclusivo de contratos de transporte de longo prazo; e prestação exclusiva de operações especiais de cabotagem.
O tema do afretamento a tempo dividiu opiniões entre um grupo favorável à liberalização do setor e os representantes da indústria naval desde as discussões para a aprovação da Lei 14.301/2022 (BR do Mar). Historicamente ligado aos estaleiros, o governo petista defende o desenvolvimento do setor, o que é apontado como uma das justificativas para a demora na regulamentação, que no governo anterior tendia a ser mais liberar com o afretamento de embarcações estrangeiras.
O MPor (Ministério de Portos e Aeroportos) também destacou que outros pontos exigiram intenso debate até a versão final do decreto. “Faltou o maior diálogo [em 2022] para uma construção coletiva entre a classe trabalhadora, o Congresso Nacional e o setor produtivo brasileiro, e nós conseguimos, nesses últimos quinze meses, avançar bem na construção deste diálogo”, defendeu o ministro Sílvio Costa Filho durante a cerimônia de assinatura do decreto.
Regulamentação pela agência
Em entrevista à Agência iNFRA, o secretário nacional de Hidrovias e Navegação, Dino Antunes, afirmou que alguns artigos que ficaram “em aberto” no decreto serão regulamentados pela ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) ou por meio de portarias. As operações especiais de cabotagem, por exemplo, serão reguladas pela agência.
“A lógica dela [operação especial] é a empresa fazer testes de mercado, algo novo, e, por isso, não podemos obrigar a seguir regras […] Quem vai acabar definindo o que é o novo é a ANTAQ, em casos concretos. A empresa vai entrar com o pedido na agência, e ele será analisado”, explicou.
A definição do cálculo da tonelagem das embarcações de apoio marítimo também ficará a cargo da ANTAQ. De acordo com Dino, a medida foi estudada pelo MPor e pela agência. A primeira ação foi a derrubada da RN (Resolução Normativa) 01/2024 pelo diretor-substituto este ano.
Os órgãos chegaram à conclusão de que explicitar regras nesse ponto específico do setor poderia limitá-lo. O decreto do BR do Mar introduz o conceito de “navegação pretendida”, que reforça o posicionamento de cada segmento dentro da cabotagem e evidencia o papel da ANTAQ em sua regulação.
“Pode-se muito bem fazer investimentos em determinada área e, depois, continuar afretando. Há o atesto de tonelagem para operar no mesmo segmento. Isso foi importante – e, às vezes, passa despercebido, justamente por ser algo muito específico. A navegação é pretendida, claro, mas isso não era óbvio, porque não estava escrito em lugar nenhum. Agora, passa a ser positivado”, explicou Dino.
Consulta pública
O estabelecimento de embarcações sustentáveis também ficará para um momento posterior, após a realização de uma consulta pública conduzida pelo MPor. A intenção é assinar um decreto com essas diretrizes durante a COP-30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025), que será realizada em Belém (PA). O período de contribuições para as regras de sustentabilidade deve começar após a consulta pública sobre embarcações de longo prazo, que será aberta hoje (17).
A secretária executiva do MPor, Mariana Pescatori, determinou a abertura de uma chamada pública, com duração de 15 dias, para definir as cláusulas essenciais dos contratos de transporte de longo prazo. O decreto também instituiu a figura da outorga condicionada, que obriga a empresa a realizar exclusivamente o tipo de serviço previamente autorizado no documento.
“A ANTAQ vai criar uma outorga condicionada. Olha, você tem a outorga, mas ela está condicionada a isso aqui, é esse contrato aqui”, explicou Dino “A ideia é permitir trazer uma embarcação exclusiva [sustentável], mas que permaneça bastante tempo em operação. E o que a gente abriu agora é justamente para definir as cláusulas mínimas que garantam esse objetivo. Então, é a longo prazo. O que está faltando no decreto vem agora na consulta pública para a portaria”, afirmou.
Outro ponto que chama a atenção no decreto é o artigo 30, que estabelece a obrigatoriedade de consulta ao MPor antes de qualquer decisão sobre descontos no FMM (Fundo da Marinha Mercante). A partir de agora, o Conselho do FMM deverá ser ouvido antes de eventuais modificações em seu orçamento. Segundo Dino, a medida traz mais segurança e evita surpresas para a pasta, como ocorreu com o Decreto 11.321/2022, que estabeleceu descontos nas alíquotas do AFRMM (Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante).
(Agência iNFRA)