Independentemente da ideologia do governo federal, sempre que há uma decisão de alterar legislações sem critério, sem aprofundamento jurídico, sem consultar a sociedade e, principalmente, as partes diretamente envolvidas, o forno da insegurança jurídica é alimentado, produzindo o bolo amargo do medo entre aqueles que habitam esta cozinha abafada e sem ventilação chamada Brasil.
Na sexta-feira passada, dia 2, expirou a MP nº 1.160, que restaurava o polêmico voto de qualidade no CARF. A seguir, reproduzimos um artigo publicado pelo jornal Valor. Os trechos mais relevantes foram destacados em amarelo. Recomendamos a leitura, pois é crucial para todos nós que vivemos e trabalhamos com comércio exterior no Brasil, visando prevenir litígios judiciais ineficientes.
Publicado dia 2/6/23 pelo Valor/Tributos
Autores: Luis Meziar e Victor Vicuña
Uma das novidades fiscais do novo governo federal foi o restabelecimento do “voto de qualidade” pela Medida Provisória (MP) 1.160/23.
Por essa regra, em caso de empate de julgamento no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), caberá aos presidentes das turmas ou câmaras, representantes do Fisco, proferir o voto de qualidade para desempate do julgado.
Historicamente, essa metodologia, criada pelo parágrafo 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72, resultava em julgamentos desfavoráveis aos contribuintes. Em abril de 2020, contudo, foi editada a Lei nº 13.988/20, cujo artigo 28 afasta a aplicação do voto de qualidade em casos de empate e estabelecendo que, nessas situações, o julgamento se resolveria em favor do contribuinte – desempate “pró-contribuinte”.
Ocorre que, como dito, a MP nº 1.160 alterou essa regra para restabelecer a aplicabilidade do voto de qualidade dos presidentes das turmas e câmaras do Carf.
A primeira crítica que se faz, embora não seja o objeto deste artigo, é se a matéria seria relevante e urgente (v.ADI 2.213 MC, ministro Celso de Mello, DJ 23-4-2004) a ensejar a edição de medida provisória (artigo 62 da Constituição Federal de 1988-CF/88).
A segunda, esta sim objeto deste artigo, diz respeito ao cenário de enorme insegurança jurídica gerado pela alteração da regra de desempate de julgamentos no Carf via medida provisória, mormente diante das recentes notícias de que o governo federal “desistiu” da convalidação da MP 1.1.60, alterando sua estratégia para tratar do voto de qualidade no âmbito do Projeto de Lei 2.384/2023.
Efetivamente, para os contribuintes que tiveram julgamentos realizados sob a égide da MP nº 1.160, qual a consequência da não conversão específica da medida provisória em lei? Os julgamentos serão anulados? São válidos? Os contribuintes poderão contestar a validade formal do julgamento no Judiciário? A Constituição tratou de solucionar essas perguntas.
O prazo de vigência de uma MP é de 60 dias prorrogáveis por igual período. Caso, ao final do período mencionado, a MP não seja convertida em lei (parágrafo 3º do artigo 62 da CF/88), como provavelmente ocorrerá, caberá ao Congresso Nacional elaborar decreto legislativo regulamentando “as relações jurídicas delas decorrentes”. No caso da MP nº 1.160 não ser convertida em lei, caberia ao Congresso Nacional, portanto, editar decreto legislativo dispondo acerca da validade dos julgamentos resolvidos pelo “voto de qualidade”, determinando se tais atos serão validos ou se serão anulados.
O que acontece, porém, se tal decreto legislativo não for editado? O artigo 62 da Constituição também traz essa resposta em seu parágrafo 11: se não editado o decreto a que se refere o parágrafo 3º no prazo de 60 dias após a rejeição ou perda de eficiência da MP, “as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por elas redigidas”.
Pode-se dizer, portanto, que a regra geral é que os julgamentos realizados no Carf durante a vigência da MP nº 1.160 serão válidos e assim o permanecerão, mesmo que a medida provisória não seja convertida em lei e não haja decreto legislativo. Somente no caso de não conversão em lei ou rejeição da MP com a edição de decreto legislativo prevendo expressamente a ineficácia dos atos realizados durante sua vigência é que, à luz do artigo 62 da constituição, os julgamentos serão anulados.
Com base nos dispositivos constitucionais acima, é de extrema importância a edição de decreto legislativo para se regular a não conversão em lei da MP nº 1.160, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que medida provisória não revoga lei anterior, mas somente a suspende. Caso a MP não seja convertida em lei, portanto, a lei anterior retoma todos os efeitos (v.ADI 5.709, ADI 5.716, ADI 5.717 e ADI 5.727 de relatoria da ministra Rosa Weber, DJE de 28-6-2019), o que significa a volta do desempate “pró-contribuinte”.
Assim, na eventualidade de perda de eficácia da MP nº 1.160 sem a edição do decreto legislativo correlato, pode-se estar diante de uma situação em que o artigo 28 da Lei nº 13.988/20 não perdeu vigência, porém restou suspenso por um período em razão de uma medida provisória não convertida em lei.
Aqui outra crítica se faz presente, pois eventual intenção de se aumentar arrecadação com a medida terá seu efeito colateral: os contribuintes recorrerão ao Judiciário para não terem seus processos estratégicos julgados no período de vigência da MP nº 1.160, como já o vêm fazendo, ou discutirão judicialmente dívida fiscal decorrente do julgamento decidido por voto de qualidade, aumentando a utilização do Judiciário e, até mesmo, condenações da União em honorários sucumbenciais.
“Legislar” via medida provisória gera grande insegurança jurídica para os contribuintes que tenham seus julgamentos pautados no Carf no período de vigência da MP nº 1.160. Tal insegurança tende a ser agravada com o possível período de volta do desempate pró-contribuinte, no ínterim entre a não conversão da MP nº 1.160 e eventual entrada em vigor, após votação, do Projeto de Lei nº 2.384/2023. O governo federal e o Poder Legislativo têm de trabalhar em harmonia, evitando-se tal insegurança jurídica.