Em 4/11/2020 foi publicada a Instrução Normativa RFB 1.986/2020 (IN RFB 1.986/2020), que trata do procedimento de fiscalização utilizado no combate às fraudes aduaneiras, ao qual estão sujeitos quaisquer intervenientes nas operações de comércio exterior e cuja instauração poderá se dar antes do início do despacho aduaneiro, durante o seu curso ou mesmo após a conclusão do desembaraço aduaneiro.
Importante notar que a referida IN revogou expressamente as antigas IN SRF 228/2002 e IN RFB 1.169/2011 que, respectivamente, dispunham sobre (i) o procedimento especial de verificação da origem dos recursos aplicados em operações de comércio exterior e combate à interposição fraudulenta de pessoas, e (ii) o procedimento especial de controle aduaneiro aplicável a toda operação de importação ou de exportação de bens ou de mercadorias sobre a qual recaia suspeita de irregularidade punível com a pena de perdimento. Tais procedimentos já eram velhos conhecidos dos importadores brasileiros em razão do longo período de tempo até sua conclusão, e do fato das mercadorias que eram a eles submetidas ficarem retidas durante o tempo de sua execução.
Em que pese a nova IN RFB 1.986/2020 tenha trazido novidades importantes àqueles que operam habitualmente no comércio exterior, há pontos que despertam preocupações e que deverão ser observados na prática a ser adotada pelas autoridades aduaneiras.
O principal deles é a abrangência e severidade das consequências que poderão decorrer deste procedimento de fiscalização, e culminar na retenção e apreensão de mercadorias, aplicação da pena de perdimento, constituição de créditos tributários, aplicação de sanções administrativas, representação para fins de inaptidão de CNPJ, de revisão de habilitação no RADAR, dentre outras medidas previstas no parágrafo único do artigo 5º da IN RFB 1.986/2020.
A IN RFB 1.986/2020 trouxe em seu artigo 3º uma lista exemplificativa de medidas que podem ser adotadas pela fiscalização no procedimento de fiscalização utilizado no combate às fraudes aduaneiras. Como exemplo, vale notar que a realização das diligências dos intervenientes fiscalizados ou dos terceiros relacionados para a coleta de documentos e informações (tal como previsto no inciso I do artigo 3º) deve, nos termos da Portaria RFB nº 6.478/2017, ser precedida da emissão de Termo de Distribuição de Procedimento Fiscal de Diligência (TDPF-D).
No TDPF-D deverá constar o escopo e descrição do procedimento fiscal a ser realizado, bem como os dados do contribuinte alvo da diligência e do auditor fiscal responsável por sua realização, de forma que o contribuinte possa verificar se o trabalho da diligência será realizado dentro dos limites propostos e também para buscar se resguardar de eventuais excessos que possam ser cometidos durante os procedimentos de fiscalização.
Outro ponto que chama atenção em relação às possíveis penalidades que podem decorrer do procedimento de fiscalização é o previsto na – aparentemente equivocada – redação do inciso I do artigo 5º da IN RFB 1.986/2020, que estabelece que poderá ocorrer a aplicação da pena de perdimento das mercadorias e da multa equivalente ao seu valor aduaneiro, quando é sabido que essas duas penalidades são aplicadas alternativamente, mas jamais cumulativamente.
É bem verdade que a IN RFB 1.986/2020 também fez incluir na IN SRF 680/2006 o artigo 41-B, com a determinação de um prazo de 16 (dezesseis) dias para a apuração dos elementos indiciários de fraude no curso de conferência aduaneira. Ainda que a determinação de tal prazo possa ser vista como elemento de previsibilidade às operações de importação, é importante lembrar, por exemplo, que questões envolvendo suspeita de fraude do valor da importação devem ser, necessariamente, examinadas à luz dos elementos e procedimentos previstos no Acordo sobre Valoração Aduaneira (AVA), e também na Instrução Normativa SRF 327/2003, sendo certo que a determinação sobre a correta valoração aduaneira não deveria impedir a continuidade do despacho aduaneiro.
Especificamente no que diz respeito aos procedimentos de retenção de mercadorias sobre as quais recaia indícios de infração punível com o perdimento, algumas inovações da IN RFB 1.986/2020 são interessantes para os importadores, tais como (i) a redução do prazo máximo de retenção de mercadorias de 90 (noventa) para 60 (sessenta) dias, prorrogável por igual período em situações justificadas, (ii) a possibilidade expressa de desembaraço mediante garantia (depósito, fiança bancária ou seguro em favor da União) para as mercadorias submetidas a tal retenção – o que antes era restrito a algumas das hipóteses de tal suspeita, além (iii) do prazo de 5 (cinco) dias úteis determinado pelo § 1º do artigo 12 para que a fiscalização fixe o valor da garantia a ser apresentada.
Esses pontos de fato representam novidades em termos de transparência e previsibilidade na condução dos procedimentos de fiscalização aduaneira, além de, em tese, serem capazes de diminuir os custos de armazenagem que correm por conta dos importadores durante o tempo em que as mercadorias permanecem retidas.
Contudo, há na IN RFB 1.986/2020 alguns pontos relativos à apresentação da garantia que merecem ser examinados com atenção. O primeiro deles é o que trata da fixação do valor da garantia a partir dos preços apurados com base nos procedimentos previstos no artigo 88 da MP 2.158-35/2001 (artigo 12, § 1º, inciso I da IN RFB 1.986/2020). Ou seja, para a determinação do montante da garantia que viabilizará a liberação das mercadorias, parte-se equivocadamente da premissa inicial de que a operação envolve fraude, sonegação ou conluio, antes mesmo que se possa comprovar se de fato isso ocorreu.
Ademais, a leitura conjunta dos §§ 1º e 2º do artigo 12 da IN RFB 1.986/2020 dá a entender que à fiscalização será válido exigir garantia não só no valor dos bens importados (tomando por base os preços apurados no artigo 88 da MP 2.158-35/2001, como visto acima), mas também da diferença dos tributos calculados em tal valor e o montante de tributos efetivamente recolhidos quando do registro da DI. Ocorre, porém, que pela própria severidade da pena de perdimento da mercadoria, a sua aplicação impede que seja também exigido do importador – já apenado com o perdimento – o montante de tributos, eis que em hipótese de perdimento da mercadoria importada não há que se falar em exigência dos tributos sobre tal mercadoria cuja importação jamais se concretizou. São hipóteses excludentes, e não cumulativas.
Por outo lado, a garantia é um elemento provisório no procedimento aduaneiro, cuja finalidade é assegurar os interesses da fiscalização ao mesmo tempo em que permite o desembaraço aduaneiro do bem importado; portanto, há racionalidade em se fixar o seu montante com base nos elementos que dizem respeito a um possível cometimento de infração sujeito a penalidades. Com relação ao caráter de provisoriedade da garantia, isso é corroborado pelo teor do artigo 14 da IN RFB 1.986/2020, que determina que o valor aduaneiro apurado para fins da aplicação da multa substitutiva ao perdimento ou para o cálculo dos tributos poderá ser distinto do valor fixado para fins de apresentação da garantia.
Neste particular, um ponto de preocupação é a determinação do artigo 18 da IN RFB 1.986/2020 em relação à execução administrativa dessa garantia a partir da constituição definitiva do crédito tributário. Assim, os importadores que se valerem da apresentação da garantia para liberação de mercadorias deverão ter muita atenção ao final do processo administrativo – decorrente de Auto de Infração possivelmente lavrado ao final do procedimento previsto na IN RFB 1.986/2020 – de forma a evitar essa execução administrativa da garantia apresentada, o que deverá demandar o ingresso de medida judicial.
Outra questão a ser destacada é o que determina o artigo 12, § 6º, inciso III da IN RFB 1.986/2020, no sentido de que a garantia deverá conter uma cláusula de “abrangência da responsabilidade por infração, dolosa ou não, a qual estabelecerá que a responsabilidade abrange qualquer sanção tributária ou aduaneira que venha a ser aplicada”.
Ainda que tal possibilidade possa ter base no item 3.4 do Artigo 7 do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (“Nos casos em que tenha sido identificada uma infração que exija a imposição de penalidades pecuniárias ou multas, a garantia poderá ser exigida para as penalidades e multas que possam ser impostas”), é de se supor que as instituições financeiras e seguradoras terão resistência em assumir obrigações pecuniárias com cláusulas que possam tornar indefinido o valor total a ser garantido, o que pode vir a ser um entrave prático aos importadores, além de representar um provável aumento no custo de tais instrumentos.
Conforme visto acima, IN RFB 1.986/2020 trouxe novidades relevantes aos importadores no que diz respeito ao combate às fraudes aduaneiras e às situações passíveis de retenção dos bens importados, e que indicam um possível aumento do rigor da fiscalização aduaneira.
Assim, além de redobrar o cuidado e atenção com as operações de comércio exterior (sobretudo sua estruturação e documentação), é importante que aqueles que operam habitualmente com comércio exterior fiquem atentos aos novos procedimentos estabelecidos pela recente IN RFB 1.986/2020, e principalmente como as autoridades aduaneiras irão implementá-los.
(Jota)