A crise e o voto de qualidade no Carf

O voto de qualidade é um debate permanente no âmbito do CARF. Muito já se publicou, e discutiu sobre as características da jurisdição administrativa em matéria tributária e as consequências do voto de qualidade para a solução das lides.

De um lado, os defensores do voto de qualidade argumentam que o processo administrativo fiscal é uma forma de autocontrole da própria Administração e que, por esta razão, o Fisco ainda deve ter poder decisório final, já que ao contribuinte seria facultado recorrer ao Poder Judiciário em caso de derrota, opção vedada à Administração. Ainda, que o voto de qualidade não desvirtuaria o critério paritário do CARF, uma vez que seria usado apenas em casos excepcionais.

De outro lado, os detratores do voto de qualidade alegam que ele é usado maciçamente em favor da Fazenda, especialmente no âmbito da Câmara Superior, e que a legislação define que, havendo dúvida, deve se dar a interpretação mais favorável ao contribuinte. Ainda, que o voto de qualidade violaria o critério paritário, uma vez que deslocaria o equilíbrio sempre em favor de um representante fazendário.[2]

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5731, Rel. Min. Gilmar Mendes) questionando a sistemática do voto de qualidade no CARF. Segundo o CFOAB, o voto de qualidade ofende os princípios constitucionais da isonomia e da proporcionalidade, uma vez que permite o uso de procedimentos discriminatórios e arbitrários para proferir seu julgamento. A medida ainda aguarda decisão.

Esse cenário demonstra que o tema está longe de ser resolvido entre aqueles que atuam no CARF e os que se dedicam a analisar suas decisões. Ainda, demonstra que a solução do impasse sobre a vitória em caso de empate nos colegiados depende da análise criteriosa e de um profundo debate sobre a natureza, a função, a estrutura e a organização da jurisdição administrativa em matéria tributária.

Com a conversão da Medida Provisória n. 899/19, conhecida como MP do Contribuinte Legal, tem-se um novo capítulo na novela do voto de qualidade. Certamente não será o último.

A extinção do voto de qualidade no CARF, com a sua substituição por um critério a favor do contribuinte, não constava do texto original da Medida Provisória. Como matéria estranha ao conteúdo da MP, foi objeto de requerimento a sua exclusão, mas, ao final, foi incluído o artigo 29 no texto da Lei de Conversão (PLV 02/2020).

A sua inclusão, na conversão de uma Medida Provisória com tema correlato, mas não específico sobre o CARF ou sobre a própria atividade julgadora administrativa, faz com que sejam muito prováveis as demandas que busquem questioná-la ou invalidá-la. Neste momento, resta esperar pela Presidente da República, a quem compete a decisão de vetar ou manter a nova sistemática do voto de qualidade.

Como consta da epígrafe, momentos de crise não são ideias para a elaboração de regras para tempos normais. O mundo enfrenta uma pandemia que causa confusão e incerteza. Todos estamos receosos com o futuro e incertos das consequências econômicas e sociais que surgirão com o isolamento social imposto pelas autoridades. O Poder Executivo já tomou medidas drásticas que envolvem o pagamento de tributos, postergando o pagamento para algumas categorias de contribuintes. Dezenas de ações já foram propostas pretendendo a prorrogação do prazo para pagamentos das obrigações dos contribuintes. O momento é de crise e de incerteza. Deveria, igualmente, ser o momento de prudência em alterações substanciais envolvendo o CARF.

A mudança do voto de qualidade deveria ter sido precedida de um debate amplo e sereno, com toda a sociedade, mas especialmente as classes representativas dos contribuintes e da Administração tributária federal. Ainda que um consenso entre os interessados seja pouco provável, um debate franco e objetivo teria como efeito o aprofundamento da compreensão sobre a natureza do critério paritário e sobre temas envolvendo o artigo 112 do Código Tributário Nacional. A alteração da sistemática do voto de qualidade poderia ser o mote para uma reforma profunda na estrutura e na organização dos julgamentos administrativos fiscais. Da forma como foi feita, essa modificação em pouco aprimora o sistema ou o próprio CARF. Em verdade, apenas aprofunda um antagonismo entre Administração tributária e contribuintes, contra o qual a maioria de nós vem lutando há bastante tempo.

Por fim, ainda que se possa concordar com a solução legislativa apresentada na conversão da MP do Contribuinte Legal – o que é o meu caso –, uma decisão dessa magnitude, e com impactos tão severos para a jurisdição administrativa em matéria fiscal, deveria ter sido tomada em tempos de normalidade e após longo e demorado debate legislativo. Concordar com o resultado final não é o suficiente para desconsiderar os eventuais equívocos que levaram até ele.

(Fonte: JOTA)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Associe-se

Filie-se

Dúvidas?

Preencha o formulário abaixo e nossa equipe irá entrar em contato o mais rápido possível!